terça-feira, 1 de abril de 2014

A Poética da Tragédia Sofocliana. Marta Várgeas. «… quem é enganado é mais sábio do que quem não é. Quem engana é mais … porque fez o que … prometido, e quem é enganado é mais sábio, porque não falta sensibilidade a quem se deixa levar pelo prazer das palavras»

Cortesia de wikipedia

«Quando Isócrates, no Panegírico, critica a facilidade com que os Atenienses se deixam comover pelas ficções dos poetas, ao passo que se mostram insensíveis perante as desgraças reais em que a Hélade se encontra, refere um dos efeitos que Aristóteles dará como característico da Tragédia, compaixão. A censura pressupõe o reconhecimento da força emocional da Poesia, uma ideia com fundas raízes na tradição grega desde Homero, mas para cuja teorização estética muito contribuiu o surgimento e evolução do teatro trágico no séc. V em Atenas. Era nele, provavelmente, que Isócrates pensava, ao dizer estas palavras, não só porque a poesia dramática continuou a gozar de um enorme prestígio, dentro e fora de Atenas, ao longo do séc. IV, muitas vezes com a reposição de peças dos grandes trágicos entretanto desaparecidos; mas também porque, em termos de efeitos emocionais, a tragédia ganhava a palma aos outros géneros literários. No século do seu florescimento, a especificidade desta nova forma de expressão poética, diferente da Narrativa e da Lírica que até então haviam preenchido o espaço daquilo a que os Gregos chamavam as artes das Musas (Mousikê), veio abrir novas vias de reflexão à polémica já antiga acerca do valor da Poesia enquanto discurso didáctico no contexto da pólis. Com o teatro tornava-se possível, se não ultrapassar completamente, pelo menos questionar a validade da aplicação ética da dicotomia verdade / falsidade às apreciações sobre a criação dos poetas que, desde Hesíodo, se instituíra como principal critério para a aferição da melhor poesia. O teatro partia do pressuposto óbvio e assumido de que a representação era isso mesmo, representação, falsidade, portanto. Isso, porém, não significava qualquer demissão dos poetas relativamente ao seu ancestral papel pedagógico na pólis. Nunca a Poesia deixou de afirmar o seu valor intrínseco, enquanto saber formativo de um ideal de homem que, como muito bem demonstrou Jaeger, foi sempre o objectivo último da Paideia grega.
A comédia As Rãs de Aristófanes, do final do séc. V, é um eloquente testemunho, ainda que caricatural, de que esse desígnio didáctico, na perspectiva de dois dos maiores representantes do género trágico, Ésquilo e Eurípides, continuava a ser sentido como a verdadeira missão do poeta. E os ataques de Platão à Poesia na República mais não são do que a proposta de substituição desse anterior modelo pedagógico, assente na aprendizagem dos poetas, por um outro, em que a Filosofia deveria assumir-se como discurso dominante. Os fundamentos éticos usados por Platão na sua diatribe contra os poetas, evidenciam o seu alinhamento crítico com todos aqueles que, a começar pelos próprios artífices da poesia, atacaram os seus colegas de ofício, acusando-os de mentirem (Hesíodo, Sólon). Assim se demarca daqueles outros que, por seu lado, vinham defendendo, ainda que de forma muito incipiente, a aplicação de juízos exclusivamente estéticos à crítica dos poetas. É o caso do sofista Górgias, por exemplo (segundo o testemunho de Plutarco, Górgias teria afirmado que, no teatro, quem engana é mais justo do que quem não engana, e quem é enganado é mais sábio do que quem não é. Quem engana é mais justo porque fez o que havia prometido, e quem é enganado é mais sábio, porque não falta sensibilidade a quem se deixa levar pelo prazer das palavras), ou do autor anónimo do tratado intitulado Dissoi Logoi (na tragédia como na pintura, quem quer que seja melhor a enganar, criando coisas semelhantes às verdadeiras, esse é o mais excelente. E mais à frente esclarece: Nas artes não há o justo e o injusto. E os poetas não compõem os seus poemas com vista à verdade, mas aos prazeres dos homens) que insistem na necessidade de se excluir o critério de verdade das apreciações acerca da poesia em geral, e da tragédia em particular. É, pois, a própria pertinência da utilização do conceito de verdade como categoria estética que começa a ser posta em causa, num processo que conduzirá à sua posterior substituição pelo conceito de probabilidade ou verosimilhança, o eikos em Aristóteles. A este processo reflexivo não foi alheia aquela disciplina que também o séc. V viu nascer e que alguns proeminentes Sofistas se encarregaram de aprofundar e difundir, a retórica, ou, como os Gregos lhe preferiam chamar nesta época, a arte das palavras. De resto, não é ocasional a semelhança dos argumentos usados por Platão para censurar ambas as artes, a Poesia e a Retórica.
Mas não é apenas a falsidade dos poetas que mobiliza a voz crítica de Platão. No seu afã racionalista (aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia), o filósofo ateniense ataca especificamente a poesia dramática, aquela que é toda de imitação, como ele próprio a define, com base nos perigos que representam, para a cidade, as emoções que ela tem o poder de suscitar. É que, para Platão, as emoções estimulam a parte mais baixa da alma, destruindo a inteligência dos ouvintes e impedindo-os de alcançarem a verdade. Deste modo atribui exclusivamente à razão o estatuto de via para a Justiça e para o Bem que deviam ser o objectivo de todos os que governam a cidade, nesta aceitando apenas, de acordo com tal ideia, composições poéticas de inquestionável utilidade social, isto é, aquelas que veiculassem valores morais para os cidadãos». In Marta Várgeas, A Poética da Tragédia Sofocliana, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT