quarta-feira, 23 de abril de 2014

A Noite Abre Meus Olhos Tolentino Mendonça. «A altura desesperada do azul no teu retrato de adolescente há centenas de anos a extinção dos lírios no jardim municipal o mar desta baía em ruínas ou se quiseres os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas as conversas ainda surpreendentemente escolares…»

Cortesia de olgaribeiro

Reconhecimento dos laços
agora as tuas mãos estranhas ao medo
procuram um abrigo mais puro, o lume
agora o tempo se mede por búzios
e os nomes flutuam mais leves que
as algas

podia abrigar duas formigas
e contar-te a história do mundo
desde que foi criado

podia se deixasses
escrever aquela história
da filha louca dos Matildes
a falar horas seguidas
da lucidez assustadora
deste poema

tudo podia
já que
os anjos do vento desenham na água
o fulgor inesperado
do teu gesto


A presença mais pura
Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?

A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um não esquecer fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome

Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
a que distância deixaste
o coração?


O olhar descoberto
Diz-me se
na água reconheces o rumor
adormecido nos búzios

Diz-me se o outono tem
a ver com as algas
com a incerteza das folhas

e se há um sentido oculto
no rodar das estações

Diz-me se
toda a imagem é engano
ou filha enjeitada
do fogo

Diz-me se é certo
que o tempo
é um único olhar
prolongado nos dias

se a vida é o avesso da vida
e se há morte
Poemas de José Tolentino Mendonça, in ‘A Noite Abre Meus Olhos

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