segunda-feira, 31 de março de 2014

Prosa no 31. Cartas do Extremo Oriente. Wenceslau Moraes. «Também não simpatizava com a realeza, de que ao contrário de muitos outros da sua classe, não procurava aproximar-se na intenção de melhorar a sua carreira, [...]. Era livre pensador, imbuído das ideias dos filósofos»

Postal de JAN de 1926
jdact

Introdução
«A correspondência de um escritor, dado o seu carácter intimista, confessional e introspectivo, faculta-nos frequentemente dados biográficos e psicológicos relevantes e constitui uma inesgotável fonte histórico-cultural. Acerca destes acervos pródigos em surpresas, se manifestou lapidarmente Eça de Queirós:

[...] uma correspondência revela melhor que uma obra a individualidade, o homem; uma obra nem sempre aumenta o pecúlio do saber humano, uma Correspondência, reproduzindo necessariamente os costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar contemporâneo e ambiente, enriquece sempre o tesouro da documentação histórica. Temos depois que as cartas sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia, que é apenas uma criação impessoal do seu espírito. Uma Filosofia oferece meramente uma conjectura mais que se vai juntar ao imenso montão das conjecturas; uma Vida que se confessa constitui o estudo duma realidade humana, que, posta ao lado de outros estudos, alarga o nosso conhecimento do Homem (correspondência de Fradique Mendes, 1969).

Escrever, livros e cartas, constituía para Wenceslau Moraes um acto de catarse, uma compensação para a extrema solidão que lhe alongava os dias, uma ponte erigida para o mundo. Wenceslau viveu grande parte da sua vida longe da terra natal, dos familiares e amigos. Com efeito, desde a sua juventude começou a trilhar as sete partidas do mundo, Estados-Unidos, Médio Oriente, Moçambique, Timor, Macau, China e Japão, primeiramente na qualidade de oficial da Marinha e, mais tarde, de Cônsul. As suas estadas em Portugal foram, portanto, breves e pouco frequentes, sendo a última vez que pisou terra portuguesa em 1891. Desenraizado, torturado, aguilhoado pela saudade, afectivamente descompensado, Wenceslau supriu a ausência dos seus entes queridos com uma correspondência assídua, de que se conhecem centenas de cartas maioritariamente inéditas. Reúne-se a correspondência dirigida pelo escritor ao médico naval Sebastião Peres Rodrigues, ao Cônsul de Portugal em Kobe, Cerveira Albuquerque, e ao engenheiro-maquinista João Manuel Guerreiro Amorim. Este espólio, inédito na sua esmagadora maioria, encontra-se depositado na Biblioteca Central da Marinha, em Lisboa. A correspondência é relevante pois pertence a três fases distintas e marcantes da vida do escritor:
  • a sua vivência em Macau e em Kobe;
  • o seu quotidiano em Tokushima, cidade do sul do Japão onde se homiziou, na sequência da sua demissão de Cônsul e de oficial da Marinha, em 1913;
  • o desmoronamento físico e psíquico dos últimos e dramáticos anos da sua vida.
Revelam-nos estas cartas a depressão que sempre acompanhou Wenceslau, as fracturas afectivas sucessivas, o relacionamento difícil com o outro, a sua sensibilidade dorida, a insegurança que sentia relativamente à sua obra, a ligação tempestuosa mantida com a chinesa Vong-Ioc-Chan e com os dois filhos, José Sousa Moraes e João Sousa Moraes, a afectividade extrema que nutria pela esposa japonesa O-Yoné e pela sobrinha Ko-Haru. Este volume deixa ainda transparecer a mundividência política do escritor. Com efeito, a sua postura perante o regicídio que teve lugar em 1908, bem como excertos de outras cartas, refutam plenamente a tese do seu monarquismo, levantada ignominiosamente na sequência da sua abrupta demissão em 1913, considerada como uma reacção ao regime republicano que despontava. Por outro lado, revela-nos também que Wenceslau se manteve crítico relativamente à anarquia, ao populismo e ao nepotismo que se foram gradualmente instaurando nas hostes dirigentes republicanas, à semelhança do que aconteceu com outras figuras relevantes da época como Raul Proença e António Sérgio. Abra-se um parêntesis para nos socorrermos de um depoimento inédito de Sebastião Peres Rodrigues, acerca das suas ideias políticas, que é bem elucidativo e fidedigno pois foi feito por alguém que o conheceu bem de perto:

Não as tinha positivas. Não indiferente, mas de critério puramente negativista, descrente das boas intenções dos politicantes. Em política colonial indignava-o a sistemática espoliação do indígena e tinha por hipócritas todas as afirmações oficiais da pretendida assistência e igualização liberal. Quanto a formas de governo não se descosia, mas revelava-se céptico e sem simpatia alguma pelos homens do seu tempo que propagandeavam as ideias avançadas no sentido de substituir a República à Monarquia. Também não simpatizava com a realeza, de que ao contrário de muitos outros da sua classe, não procurava aproximar-se na intenção de melhorar a sua carreira, pois isso ser-lhe-ia facilitado pelas suas relações de família [...]. Era livre pensador, imbuído das ideias dos filósofos enciclopedistas (carta de 9 de Janeiro de 1888) [...].

A correspondência dirigida a Sebastião Peres Rodrigues, que apresenta algumas lacunas, constitui o núcleo mais importante, facto que decorre das relações privilegiadas que mantinham, forjadas a partir de 1886, data em que se encontraram na canhoneira Douro, em viagem para Moçambique». In Wenceslau de Moraes, Cartas do Extremo Oriente, Fundação Oriente, Lisboa, 1993, ISBN 972-9440-07-7.

Cortesia de FOriente/JDACT