sexta-feira, 21 de março de 2014

O Complexo de Culpa do Ocidente. Pascal Bruckner. «A mentalidade de inculpação subsiste em nós, com as devidas diferenças, e reflecte-se na forma como espontaneamente nos recriminamos pelas desgraças do planeta. O europeu médio, homem ou mulher, é um ser de uma sensibilidade extrema…»

jdact e cortesia de litafalcao

Os Propagandistas do Estigma
Os Flagelantes do Mundo Ocidental
«(…) Em 1947, Maurice Merleau-Ponty, que ainda nutria uma certa simpatia pelas ideias comunistas, quis compreender a lógica dos processos de Moscovo que, dez anos antes, tinham permitido a Estaline eliminar os seus antigos companheiros tidos então como inimigos do povo. Apesar de estarem inocentes das responsabilidades que lhes eram imputadas, os bolcheviques da linha dura confessam os seus erros e reconhecem culpas imaginárias. Reconhecem toda a espécie de traições contra o proletariado e morrem confiantes no futuro da Revolução. A mentalidade de inculpação subsiste em nós, com as devidas diferenças, e reflecte-se na forma como espontaneamente nos recriminamos pelas desgraças do planeta. O europeu médio, homem ou mulher, é um ser de uma sensibilidade extrema, sempre predisposto a sentir-se culpado pela pobreza em África e na Ásia, a compadecer-se com as desgraças do mundo, a responsabilizar-se por elas, a questionar-se eternamente sobre o que pode fazer pelo Sul, em vez de se interrogar sobre o que pode o Sul fazer por si próprio. Desde a tarde do dia 11de Setembro de 2001, grande parte dos nossos concidadãos, não obstante a simpatia evidente pelas vítimas, pensou para consigo que os americanos estavam mesmo a pedi-las. A fina flor da inteligência europeia empenhou-se imediatamente nesta via com uma profusão de subtilezas retóricas: os piratas do ar que destruíram as torres do World Trade Center eram agentes de um impiedoso castigo. Foi então que se multiplicaram os Neros de pacotilha que aplaudiram o duplo atentado, entrevendo nesse acto a concretização de uma justiça imanente.
Foi uma justa represália e o restabelecimento de um equilíbrio quebrado por uma dissimetria excessiva. Eis a interpretação de Jean Baudrillard numa religiosíssima justificação da vingança:

Quando a situação é monopolizada desta forma pelo poder mundial, quando nos habituámos à tremenda condensação de todas as funções pela máquina tecnocrática e pelo pensamento monolítico, que outra via existe para além de uma alteração radical da situação? O próprio sistema criou as condições objectivas desta retaliação brutal. Uma vez que tem todos os trunfos, o sistema força o Outro a mudar as regras do jogo (...). Só um terror combate outro. Um terror que não esconde uma ideologia.

Porém, os atentados do 11 de Março de 2004, em Madrid (200 mortos) , provaram que os Europeus tinham também interiorizado a culpa: a decisão do novo governo de esquerda de Zapatero (que há muito se empenhava nesta causa) de retirar as tropas espanholas do Iraque fez crer que se vergava às exigências dos bombistas e que o apoio de Madrid a Washington na segunda guerra do Golfo era a cause do morticínio na estação de Atocha (enquanto células terroristas continuaram a fomentar ataques muito depois da retirada, alegando como motivo a ocupação da Andaluzia muçulmana depois do século XV). Recordemos que um milhão de pessoas se manifestou em Madrid e não se ouviu um grito de ódio contra os Árabes. Contentaram-se em vaiar José Aznar que os envolvera de mau grado na guerra do Iraque e acusara injustamente a ETA, a organização separatista basca. O massacre é ainda hoje atribuído ao líder da direita popular, elevado comodamente à categoria de bode expiatório, o que impede que nos interroguemos sobre as causas reais. As bombas que explodiram em Londres no dia 7 de Julho de 2005 e vitimaram cerca de 60 pessoas deram também lugar a toda uma retórica de expiação. No dia seguinte, lia-se na manchete do jornal Le Parisien, um órgão que não é especialmente reputado pelo seu esquerdismo: Al-Qaeda pune Londres, (o jornal desculpar-se-ia em seguida por esta frase). Ken Livingston, presidente da câmara de Londres e convicto homem de esquerda, conhecido pela sua eterna hostilidade a Israel, condenou os atentados mas referiu pouco depois que era urgente deixar em paz os países árabes, esquecendo talvez que os terroristas eram na sua maioria cidadãos britânicos de origem paquistanesa:

Os atentados suicidas não teriam provavelmente acontecido se o Ocidente tivesse deixado os países árabes tomarem livremente os suas decisões após a Primeira Guerra Mundial. Creio que a intervenção ocidental em países maioritariamente árabes que se estendeu por duas décadas ficou a dever-se à necessidade de petróleo por parte do Ocidente (...). Se, no fim da Primeira Guerra Mundial, tivéssemos feito o que havíamos prometido aos árabes, ou seja, permitido que tivessem os seus próprios governos, e tivéssemos permanecido à margem dos seus assuntos, comprando apenas o seu petróleo (...), penso que esta desgraça não teria ocorrido.

In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.

Cortesia de PEA/JDACT