segunda-feira, 10 de março de 2014

O Comércio Negreiro. Escravos e Traficantes no império português. Séculos XV a XIX Arlindo M. Caldeira. «… entre 1730 e 1818, o reino do Daomé pagava ao império de Yoruba um tributo de 82 escravos por ano. Parece, no entanto, que a maior parte dos escravizados que eram lançados no comércio a longa distância provinha de acções de guerra»

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Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) Num registo diferente, no interior de Angola, no início do século XVII, alguns comerciantes africanos apenas aceitavam vender lotes completos de escravos, sem permitir escolher os bons dos menos bons. Dessa forma, os mercadores europeus ou os seus intermediários ficavam com alguns escravizados que não conseguiam que fossem aceites para exportação. Nesse caso, vendiam-nos a famíhas africanas, que os utilizavam nas suas sementeiras. Situações de tipo semelhante, que é possível encontrar junto de diferentes povos da costa ocidental de África com os quais os portugueses e os outros europeus se relacionaram, mostram-nos o infundado das teses que atribuem à Europa não apenas toda a iniciativa comercial como até invenção, do próprio tráfico negreiro, quando só por absurdo se pode admitir que fosse possível fazê-lo sem a complementaridade das sociedades locais. Na verdade, houve sempre africanos como parte interessada na manutenção e crescimento do tráfico, estando nas suas mãos todos, ou quase todos, os circuitos de obtenção e transporte dos escravizados até ao momento da venda nos portos de embarque. E as elites das sociedades linhageiras iriam utilizar os recursos que lhes dava a abertura ao comércio a longa distância para consolidarem a sua hegemonia interna.
Enquanto foi possível, os europeus aproveitaram os mercados de escravos já em funcionamento. No entanto, à medida que a procura aumentou, puderam instalar feitorias nos lugares mais favoráveis à navegação, para onde, mercê da capacidade de atracção das suas mercadorias se desviaram as rotas internas tradicionais ou foram criadas rotas totalmente novas. Uma questão naturalmente se impõe: como foi possível aos africanos responderem a um aumento tão intenso da procura de mão de obra escrava como o que aconteceu a partir do século XVII? Embora, quando se trata de comércio de seres humanos, esta formulação se torne chocante, poderíamos perguntar de outra maneira: como reagiram os mercados internos a essa pressão do exterior? Aparentemente, as circunstâncias que levavam à escravização continuavam a ser as mesmas de antes da atlantização do tráfico mas algumas delas sofreram uma clara intensificação. Vejamos quais eram as principais modalidades de produção de cativos. ' Estando generalizada, na África subsariana, a instituição da escravatura, muitos eram os que já nasciam escravos. Atendendo a que muitas famílias dispunham de plantéis de escravos em número significativo, poderia parecer que estes, já descendentes de escravos, eram os primeiros a ser vendidos. Não era isso que acontecia e, em algumas regiões de África, sobretudo a norte do equador, as famílias eram renitentes em desfazer-se dos escravos da casa, particularmente para o tráfico atlântico, acabando por ser vendidos apenas quando essa má sorte atingia os próprios donos.
Uma fonte de escravização, e que não era rara, podia ser a perda voluntária da liberdade motivada pela pobreza e pela fome. A seca e outras calamidades naturais, provocando situações de carência generalizada, levavam a que o próprio prescindisse da sua liberdade em troca da sobrevivência. Foram registados milhares desses casos por ocasião da grande seca que assolou Angola no final do século XVIII. Era também nessas circunstâncias de privação e penúria que havia quem vendesse familiares, nomeadamente esposas e filhos, para escapar e fazê-los escapar à inanição. Outra forma de obtenção de escravos tinha a ver com o pagamento de impostos e tributos: Estados vassalos de outros mais poderosos tinham por vezes de satis fazer obrigações em cativos. Assim, para referirmos apenas um caso, entre 1730 e 1818, o reino do Daomé pagava ao império de Yoruba um tributo de 82 escravos por ano. Parece, no entanto, que a maior parte dos escravizados que eram lançados no comércio a longa distância provinha de acções de guerra ou de incursões pontuais para raptar homens e mulheres em territórios vizinhos, actividades que eram favorecidas pela fragmentação dos Estados e pelas diferenças linguísticas e étnicas que os separavam». In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.

Cortesia E. Livros/JDACT