sexta-feira, 7 de março de 2014

Mãe-D’Água. Ou a Poesia de Eugénio. Óscar Lopes. «… a própria astrologia morre entre Kepler e Newton, a segregar uma mecânica que é tão terrestre como celeste; a alquimia morre entre Paracelso e Niels Bohr a segregar estruturas moleculares, atómicas e quânticas»

jdact e wikipedia

«Este título ocorreu-me sem que eu ainda agora saiba ao certo porquê, e de um modo obsessivo. Reconheço que a frase mãe-d'água já mexe de há muito comigo; grafada assim, com um apóstrofo, lembro-me de a ter lido, numa ressonância de lenda à esquina de uma rua, ou travessa, ou escadinhas, era então estudante em Lisboa; mas o apóstrofo não corresponde à minha pronúncia infantil nortenha, sem contracção vocálica e boleada por um ditongo que hoje me soa um pouco ao galego: mãe diágua. Fico logo a ver uma fonte, nascente, mina ou reservatório de aqueduto, mas com o líquido a borbulhar desde o fundo, o que terá talvez que ver com outra expressão afim, olhos de água, aliás um título ribatejano de Redol. Hoje os mitos refugiam-se em constelações verbais como estas, que bastam para animar um devaneio, sem qualquer necessidade de enredo ou lenda. E eis desde já uma coisa que se liga à poesia de Eugénio de Andrade: a sua aura mítica, mas sem o alarde de qualquer mito, a sua materialidade verbal ou frásica directamente presa a uma certa memória, como que imemorial, quero dizer, uma memória que mal precisa do suporte de um sujeito civil, porque irradia logo dos usos de certas palavras em certas conexões, certas entoações, a evocar flutuantes situações de fala, memória que se coa através de não se sabe que interstícios comunicativos, ligados entre si, mas sempre de maneira nova a cada leitura do poema.
A mãe-d'água do título surgiu, portanto, como um enigma a decifrar; e a frase está aí ligada ao nome do poeta através de um ou que é também muito seu e perturbante. Não se trata do ou de disjunção (que, de resto, os semanticistas já consideram muito ambíguo no seu estrito sentido lógico); não é o ou de certas subtitulações muito em moda no século XVIII (Justine, ou les Malheurs de la Vertu); é um ou de conexão resignadamente imprecisa, aberta às disponibilidades receptivas do leitor ou destinatário, e que num seu belo poema se desdobra em ou, se preferes, e que, aí mesmo (como noutros poemas), equivale a coisas ou referências puramente virtuais, marcadas por um como se, um como quem, e, outras vezes, nos convida a arbitrar entre sinónimos de criação meramente contextual pássaro ou rosa ou mar, ou entre um rosário de imagens a apontar para o objecto de um mesmo ardor. Podemos generalizar a toda a obra de Eugénio o âmbito desta disjunção que se oferece ao leitor. Com efeito, e tal como nas nossas melhores poesias paralelísticas do século de 1200, embora abandonando qualquer rigidez arcaica de ordem estrófica ou outra, os seus poemas avançam por modulação contínua das imagens ou frases, como que entre coisas disjuntas mas afins, aleatórias mas afinal consequentes, num certo enrredar das palavras com aquele grande silêncio em que elas se perfazem.
Falei há pouco na disseminação dos mitos antigos, cuja real vitalidade acaba por se abrigar em simples junturas verbais que, despercebidamente, nos brincam na boca e que certos poetas conseguem coagular e chamar à atenção em textos surpreendentes. Eugénio parece que precipita os mitos em cristais, mas de uma substância que escapasse a qualquer fórmula química ou a quaisquer eixos definidos de cristalização, e que todavia sugerissem a precisão de uma sua especial química ou cristalografia. Já certos românticos (e deles há ecos em Eça e Antero) explicaram a importância moderna (pós-renascentista) da música como sendo o indispensável sucedâneo da mitologia, e também dos dogmas e dos ritos solenes, claramente em agonia, apesar de apoiados por tantos artifícios ou próteses: a própria astrologia morre entre Kepler e Newton, a segregar uma mecânica que é tão terrestre como celeste; a alquimia morre entre Paracelso e Niels Bohr a segregar estruturas moleculares, atómicas e quânticas. Fazem-se ainda hoje prodígios de elucubração metafísica (talvez sempre, no fundo, teológica) para ressalvar a vigência de quaisquer mitos esotéricos ou cabalísticos, a pretexto de contradições teoréticas que há nas ciências, contradições inevitavelmente nascentes a cada passo em frente e até propulsoras do próprio progresso racional e de uma eficácia técnica crescente (de que o esotérico nem prescinde). Mas para quê tanta freima fideísta, se o melhor de todos os mitos subsiste, despercebido, na mais correntia das frases e nos actos de comunicação, e comunicação tem até, etimologicamente, que ver com comunhão: aquilo que ainda vive das religiões ou mistérios mora, afinal, no grande mistério quotidiano de as pessoas se falarem, e de cada qual de nós se identificar, sem dar por isso, a qualquer outro na alteridade (a ambos comum) da própria fala». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Mãe-D’Água, ou a Poesia de Eugénio, Boletim da 63ª Feira do Livro, 1993, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3.

Cortesia de Caminho/JDACT