domingo, 9 de março de 2014

Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado. Fialho de Almeida. «Em torno à cadeira de rodas em que os lacaios passeiam da alcova para o terraço, este cadáver lúcido e nostálgico, reconstruir um drama é coisa fácil, a quem se lembrar de Frederico II d'Alemanha»

jdact e Cortesia de wikipedia

O seu enterro
«(…) Da boca dos facultativos do paço, nem uma palavra coada a tal respeito. À uma, o segredo profissional, naquela altura solene, mercê da hierarquia altíssima do enfermo, inibia-os de qualquer informação precisa ou categórica. À outra, a polícia da rainha, sobre sequestrar do paço os indiscretos, com tal arte assediava os assistentes, que lhes faria pagar com o desfavor do trono a mais ligeira indiscrição dalgum, cá fora, aos ouvidos da imprensa e da opinião. Compreende-se entanto a ansiedade geral, perante aquela misteriosa agonia passeada de palácio em palácio, quando entre os locais optimistas dos jornais do governo, e os sombrios prognósticos dos jornais da oposição, os dois jogando os dados com os últimos dias do rei, com o sentido no ganho das próximas eleições, um campo de cogitações se abria, enorme e vago, aos receios de uma súbita catástrofe que alancearia de mágoa o espírito público, ainda não preparado a ver no trono outra cabeça que a desse bonacheirão e céptico monarca Luís.
Todos à uma, incertos da duração dessa vida de rei, previam já o instante em que a paralisia das pernas lhe subisse aos braços, em que a esclerose cérebro-espinhal lhe estendesse a abolição sensorial, do ouvido aos olhos, tornando o enfermo numa espécie d'estranho morto-vivo, paralítico e cego, gastrálgico e mudo, consciente e delirante, alimentado por uma sonda, despejado das urinas por outra, parindo as fezes a ferros, lictinado, hediondo, coberto de escaras, e contaminando-se, pesadelo horrível dessa podridão vagarosa, metódica, generalizada, atrocíssima, sem pressa, em que os tecidos e os órgãos, já decompostos, ainda para assim dizer fingem ter vida, e em que a dor remorde o íntimo do ser continuamente, mil vezes mais fulgurante do que no organismo íntegro, porque o supliciado tem consciência dela, e já nem sequer pode jogar a voz p'ra se queixar!
Em torno à cadeira de rodas em que os lacaios passeiam da alcova para o terraço, este cadáver lúcido e nostálgico, reconstruir um drama é coisa fácil, a quem se lembrar de Frederico II d'Alemanha. São os velhos servidores, receosos, de perder o prestígio da corte, quando esse rei sorrir pela última vez, palidamente, às artificiosas consolações que lhe trouxerem. São os ministros, lívidos como grilhetas, e acossados como cães, num canto da antecâmara, a duvidar se acharão no carácter do rei novo, aquela amável tolerância com que sempre os recebera o rei finado. São os chefes da oposição, esfaimados por seis anos d'exílio, circunvagando de roda ao crepúsculo real as cínicas figuras, a especular com a impaciência febril do herdeiro do trono, cuja memória é boa, e fará presidente do conselho o que primeiro o tratar por majestade. É a Igreja que não quer perder o final d'acto, e a cada momento espreita à porta, impaciente, com as sagradas vestes numa trouxa, aguardando a hora em que haja de fazer engolir ao viajante o pão ázimo, como um bilhete de primeira classe, para a viagem das sibéricas neves do outro mundo. E finalmente a rainha, ia a dizer a imperatriz Frederico, soberba e escultural nas suas grandes roupas, os seus olhos d'estátua dolorosa, a palidez de Juno despenhada, arrastando-se sem forças, de sofá para sofá, lassa de vigílias sem conta, alucinada já de ciúmes sem refrigério, agarrando-se a todas as vergônteas da esperança, pedindo à ciência a ressurreição desse cadáver, prometendo a Deus magníficas oferendas; e logo renegando Deus e renegando a ciência, ao sentir as suas lástimas quebrarem-se d'encontro à mão de bronze do destino, que a relega, magnífica orgulhosa, à semi-sombra duma vida subalterna, tão asfixiadora para os predomínios teatrais da sua grande raça». In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado, Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8.

Cortesia de AAlvim/JDACT