terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Transição de Macau para a Modernidade. 1841-1853. Maria T. Lopes Silva. «Macau é território chinês e o procurador […] é o órgão de todas as nossas recíprocas relações com eles [chineses] e o único responsável para com o imperador por esta cidade que possuímos no seu império»

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Macau na conjuntura político-económica de Extremo Oriente, 1841-1844. Da guerra do ópio ao Tratado de Nanquim. Macau, uma cidade disputada por três impérios
«(…) Na opinião de Silveira Pinto, havia ainda outros obstáculos que era necessário ultrapassar. Entres estes contavam-se o facto de numa qualquer obra na cidade não se poder fazer sem licença dos Mandarins, que custa boas patacas; eles nos fornecem o comer, os artistas de todas as denominações, e até os servidores porquanto os portugueses daqui, ou os que se intitulam tais, não querem pertencer senão à classe dos comerciantes, do clero, ou dos empregados nos navios, e julgariam desprezar-se se se empregassem em ofícios mecânicos. Esta situação era ainda agravada pelo facto de as autoridades chinesas, conceituando-nos, entre o número dos seus escravos obrigarem por isso os portugueses a sujeitarem-se às suas regras, sob pena de cortarem o fornecimento de víveres à cidade. Não admira, por isso, que Silveira Pinto tenha escrito ao ministro da Marinha e Ultramar que [...] é forçoso tolerar até que apareça uma boa ocasião, mas que ela não seja desprezada.
Todas estas sugestões, apesar de não serem totalmente inovadoras, não encontravam eco na maior parte das autoridades e da população de Macau. O juiz de direito, José Maria Rodrigues Bastos, por exemplo, usava o argumento do foro para defender exactamente o contrário, ou seja, o [...] solo é chinês, e dele pagamos foro anualmente ao imperador [por isso] a boa razão pede que a principal aliança seja com o dono do solo. Não muito distante destes pensamentos devia andar a elite económica da cidade que, por razões biológicas e económico-financeiras, mantinha boas relações com as autoridades chinesas a nível local. Esta elite, representada directa ou indirectamente no Senado, estava mais habituada a tratar de negócios do que de assuntos políticos, como o próprio Silveira Pinto chegou a dizer várias vezes, mas a respeito do estatuto de Macau não havia dúvidas: Macau é território chinês e o procurador […] é o órgão de todas as nossas recíprocas relações com eles [chineses] e o único responsável para com o imperador por esta cidade que possuímos no seu império.
Sendo assim, não admira que as principais preocupações dos senadores com o conflito tenham surgido sobretudo no início da guerra, ao ver que os seus negócios estavam a ser afectados e, no fim, quando o estabelecimento dos ingleses em Hong Kong começou a representar, pelo menos teoricamente, uma nova ameaça. Apesar disso, os macaenses também pretenderam assumir a neutralidade durante o conflito, não por razões políticas, como Silveira Pinto, mas por razões económico-financeiras. A aceitação do princípio básico de que Macau é [...] um Estado dentro de outro Estado deve mesmo ter levado os portugueses e macaenses residentes na cidade a nem sequer questionarem alguns dos principais símbolos da autoridade chinesa na cidade, como era o caso das delegações do Hopu Cantão. Por tudo o que acabámos de ver, não admira que Silveira Pinto, no ano de 1840, quando a cidade conhecia já um período de grande prosperidade comercial, tenha escrito para Lisboa que se sentia sozinho nas posições que tinha de assumir.
É bem possível que este sentimento tenha correspondido à verdade pois, perante um juiz que defendia a aliança com as autoridades chinesas e um Senado que também se inclinava neste sentido, mas que acima de tudo preferia os seus interesses comerciais, não devem ter sido muitos os apoiantes do governador. Além do mais, é provável que esta conjuntura tenha levado Silveira Pinto a pensar que era necessário criar uma maior autonomia em relação ao poder chinês e existe até alguma probabilidade de estes acontecimentos terem começado afazer germinar nele a ideia da independência do Estabelecimento, projecto que alguns anos mais tarde Ferreira Amaral conseguiu implementar pela imposição abrupta dos factos. No entanto, se este gérmen existiu, ele ainda não encontrava apoio no Governo da Metrópole. A prova disto é que, ainda no ano de 1839, quando Silveira Pinto enviou para Lisboa vários regulamentos que pretendia pôr em prática em Macau, a comissão que os analisou, no início de 1841, defendeu que Macau posto que é uma cidade portuguesa, o seu local pertence por direito natural e civil ao Império da China, e a conservação aí desse nosso domínio, depende absolutamente da vontade daquele governo. Em relação ao conflito sino-britânico, o governo da metrópole, apesar de recomendar a Silveira Pinto a neutralidade durante a guerra, mostrou-se sempre mais favorável a que, também em Macau, existisse uma aliança luso-britânica, o que aliás está relacionado com a dependência crescente de Portugal em relação à Grã-Bretanha. Não obstante, tudo nos leva a crer que esta indicação não foi respeitada e, talvez por isso mesmo, Portugal conservou a administração de Macau durante quase mais cento e cinquenta anos». In Maria Teresa Lopes Silva, Transição de Macau para a Modernidade, 1841-1853, Orientalia, Fundação Oriente, 2002, ISBN 972-785-035-9.

Cortesia da FO/JDACT