segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Maria Madalena das páginas da Bíblia. Para a Ficção. Textos Críticos. Organização de Salma Ferraz. «… foi realmente a discípula amada, mas preferiu-se chamar a João de discípulo amado, e não à Maria Madalena, porque o defeito desta era ser mulher e com agravante: era uma mulher sábia e líder»

Cortesia de verasabino e jdact

Maria Magdalena. A antiodisseia da discípula amada
«(…) Ou seja, à biografia e perfil de Madalena, que, pelo texto de Lucas, sofria de algumas enfermidades psicossomáticas, foram acrescentados o perfil de uma mulher pecadora que ungiu os pés de Jesus, com sua feminilidade explícita (perfumes, lágrimas, cabelos soltos), e o motivo de seu pecado ter sido identificado com a prostituição, mais o episódio do quase apedrejamento de uma mulher adúltera, que nem sequer é nomeada por João. Estava feita a confusão, a síntese de três biografias, formando o tríplice rosto de Madalena, endemoninhada, pecadora e prostituta, que perdurou durante séculos entre leigos no assunto. O imaginário cristão medieval, ao misturar, em um só rosto, o rosto de diversas mulheres, criou uma fantasia perturbadora sobre a sexualidade de Madalena. É Moro que, em sua obra Arqueologia de Madalena, afirma sobre Madalena o seguinte:

Por essa má interpretação de textos, muitas vezes decorrentes de traduções incorrectas, sua imagem foi sendo formada ao longo dos séculos como mulher pecadora, alguns até chegaram a julgá-la como prostituta que foi purificada por Cristo e que, como prova de seu amor espiritual, lavou os pés do Senhor e os enxugou com os próprios cabelos. Considerada mulher cheia de pecados, Madalena passou a representar o arquétipo feminino tradicional, a transmissora do pecado original, que, após ser curada, teria passado a sua vida em penitência e arrependimento. Assim uma das mais importantes figuras femininas dos Evangelhos teve seu papel adulterado, o significado de sua presença e de sua obra inteiramente modificados.

Madalena é uma mulher que não tem pertença, não pertence a ninguém. Ao contrário de outras mulheres dos Evangelhos que são denominadas como irmã de fulano, mulher de sicrano, Madalena só é identificada com o sobrenome do lugar de onde procedia: de Magdala, local conhecido pela abundância da pesca e pelo trabalho com fiação. Ela é uma das únicas mulheres a terem o seu segundo nome, Magdala, citado, justamente com o intuito de diferenciá-la das demais Marias. Deste facto, podemos inferir que poderia ser uma mulher solteira, ou viúva e que tinha posses, porque, segundo Lucas, ela seguia Jesus com os bens dela. Cabe ressalvar aqui algo que tem passado despercebido para aqueles que imputam à Madalena a condição de prostituta: se Madalena exercesse a mais antiga profissão do mundo, cairíamos em uma situação constrangedora para o cristianismo nascente, já que, neste caso, Jesus e seus discípulos teriam sido mantidos com dinheiro vindo de fontes duvidosas [...] Por outro lado, o adjectivo usado constantemente para qualificar Madalena era de ex-possessa. Se ela tivesse sido meretriz, o adjectivo seria este em detrimento daquele.
Cabe lembrar que dois aspectos importantíssimos da biografia de Madalena foram olvidados: ela era Discípula de Jesus e foi a primeira pessoa para quem Ele apareceu depois da ressurreição, ou seja, ela foi a primeira testemunha da ressurreição. Em Marcos, temos: Havendo ele ressuscitado de manhã cedo no primeiro dia da semana, apareceu primeiro a Maria Madalena, da qual expelira sete demónios. Interessante observar que os discípulos, com medo de serem incriminados como cúmplices, não estavam presentes nem no Calvário, nem no Sepulcro. Lá estavam somente as frágeis mulheres, vigiando os acontecimentos. Parece que só as mulheres tinham a sensibilidade para perceber que algo de sobrenatural aconteceria ali naquela tumba fria. Só sabemos que Madalena estava no sepulcro, porque não havia nenhum homem; se houvesse, não saberíamos que ela e as outras mulheres lá estavam, porque a importância do um único homem suplantaria a presença de meia dúzia de mulheres.
É o evangelista João quem, no capítulo 20, informa que:

Tendo disto isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não reconheceu que era Jesus. Perguntou-lhe Jesus: Mulher, por que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste, diz-me onde o pusestes, e eu o levarei. Disse-lhe Jesus: Maria! Ela voltando-se, lhe disse em hebraico: Raboni (que quer dizer Mestre)! Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos [...] Então, saiu Maria Madalena anunciando aos discípulos: Vi o Senhor! E contava que ele lhe dissera estas coisas.

O evangelista Marcos esclarece no capítulo 16, que, enquanto Maria Madalena vigiava o sepulcro, aguardando para untar o corpo de Jesus conforme as tradições da época (mirrófoba), os discípulos estavam tristes e chorando, bem longe dali. As mulheres, nos momentos mais difíceis da vida de Jesus, foram mais leais a Ele que os homens que O seguiram. Não se trata aqui de exaltar o feminino nos Evangelhos, mas apenas apontarmos os factos narrados. Maria Madalena tinha liderança entre as demais mulheres e foi a primeira a ver Jesus após a ressurreição, foi a transmissora da Boa Nova da ressurreição aos demais discípulos que se tornaram os Apóstolos de Cristo. Corrobora nossas afirmações Moro, que afirma: … quando ela usa o termo Rabbuni, que é uma forma mais solene de dirigir-se ao Mestre, usada quando os judeus se referiam a Deus, vemos que ela compreendeu antes de todos o papel que Cristo passara a exercer. Maria Madalena foi realmente a discípula amada, mas preferiu-se chamar a João de discípulo amado, e não à Maria Madalena, porque o defeito desta era ser mulher e com agravante: era uma mulher sábia e líder, que participava activamente dos momentos cruciais da vida de Jesus. Lembramos que o discípulo amado não estava na tumba, mas Madalena estava lá aguardando e vigiando. Pedro, que negou a Jesus três vezes e que também não estava presente na crucificação, foi intitulado de Príncipe dos Apóstolos. Por que Madalena não foi denominada Princesa dos Apóstolos?» In Salma Ferraz, organização, Maria Madalena das páginas da Bíblia para a Ficção, Textos Críticos, Eduem, UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN 978-85-7628-334-8

Cortesia de Eduem/JDACT