terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Cartas do Japão Antes da Guerra (1902-1904). Wenceslau Moraes. «Algumas casas hespanholas de Yokohama e de Kobe fazem bello negocio com o género. Ora, não valeria a pena que os nossos negociantes estudassem o assumpto, as qualidades e preços do artigo…»

Cortesia de wikipedia

Cartas do Japão. 23 de Abril de 1902
«(…) Estamos em plena primavera, esplendida, attrahindo aos logares mais pittorescos milhares e milhares de visitantes; a peregrinação começa com a florescência das ameixoeiras, em principio de março, seguindo-se os pecegueiros, as cerejeiras, as azáleas, um nunca acabar de encantos naturaes, podendo dizer-se que a população inteira passa n'esta quadra a vida na rua, de aldeia em aldeia, de collina em collina, em extasis bucólicos; agradável diversão aos rigores do inverno, que foi este anno bastante benigno, mas não tanto que não deixasse de si uma pungente lembrança. Refiro-mo a um temporal de neve ao norte do paiz, cerca de Owomori, ocasionando a morte de quasi todo um batalhão de infanteria (mais de 200 homens), que largara imprudentemente o seu quartel, em excursão de exercício. A neve, abundantíssima, surpreendeu esses homens em pleno campo, impedindo-os de proseguirem ou de retrocederem, morrendo quasi todos. O commandante da força, o major Yamaguchi, foi depois encontrado ainda com vida, rodeado de cadáveres de soldados, que lhe faziam barreira, indicando isto que elles intentaram, antes de tudo, abrigar do frio e salvar o seu chefe, sacrificando-se. O major falleceu poucos dias depois, n'um hospital, e sabe-se que recebera antes uma carta do próprio pai, que lhe dizia ter por provável que a morte o não pouparia reservando-lhe igual sorte á dos seus subordinados; mas, se assim não acontecesse, aconselhava-o a suicidar-se, como expiação honrosa pela falta que praticara… Exemplos d'estes, restos do antigo cavalheirismo militar do Japão, estão ainda longe de ser raros, e fazem da cada japonez o melhor soldado do mundo, no respeitante a orgulho de classe, patriotismo sem limites, temeridade, desprezo pela vida. A guerra com a China, em 1895, e os últimos acontecimentos no império chinez, onde se encontraram juntas tropas europeias e japonezas, bem confirmam esta opinião.
Interessado n'uma campanha, que não se me affigura banal, de chamar a attenção dos portuguezes para esteja muito florescente império do Extremo Oriente, que tão pouco conhecemos, prometti dar a indicação dos géneros que, em minha opinião, devem particularmente servir para estreitar as relações de commercio directo entre Portugal e o Japão. Tratarei hoje dos géneros portugueses, que são: vinhos (generosos, espumosos e communs), cortiça (bruta e em obra), conservas alimentícias (sardinhas, fructas, etc), azeites, vários produtos coloniaes, como borracha, marfim, café. O Japão importa já bastantes vinhos generosos e espumosos, em geral para consumo dos europeus residentes e da chusma de visitantes dos hotéis de Yokohama, de Kobe e de Nagasaki. Os nossos vinhos são conhecidos, uns importados, em mui pequena quantidade, directamente de Portugal, outros, em maior quantidade, vindos por intermédio de vários paizes estrangeiros, e outros, em muito maior proporção, portuguezes só no nome, chamados Porto, Madeira, etc, quando são fabricados na Allemanha ou na Inglaterra. Os nossos negociantes devem, sem demora emprehender tenazmente a introducção aqui, directa, das boas marcas dos vinhos portuguezes, não regateando sacrifícios, que mais tarde se traduzirão em prospero e remunerador trafego.
Os japonezes, em geral, e particularmente o proletário, não apreciam, é claro, os bons vinhos europeus e americanos, contentando-se com o saké indígena, que é o producto da fermentação do arroz. No emtanto, os vinhos inferiores, ínfimos mesmo, téem aqui bastante acceitação, servindo a preparar uma beberagem adocicada e tida por fortificadora, muito apreciada entre o povo. Taes vinhos vêem da Hespanha, da França, da Itália e de outros paizes; mas não do nosso. Algumas casas hespanholas de Yokohama e de Kobe fazem bello negocio com o género. Ora, não valeria a pena que os nossos negociantes estudassem o assumpto, as qualidades e preços do artigo, no intuito de introduzirem no Japão os vinhos baratos portuguezes?» In Wenceslau de Moraes, Cartas do Japão, Antes da Guerra (1902-1904), prefácio de Bento Carqueja, Livraria Magalhães & Moniz, Editora, Oficinas do Comércio do Porto, Porto, 1904.

Cortesia de L. Moniz/JDACT