terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A descoberta da economia-mundo. Immanuel Wallerstein. «Desagregaram-se, para a historiografia, os gigantescos blocos espácio-temporais, com características imutáveis, a civilização egípcia, a civilização helénica, a civilização medieval, corroídos pelo sentido evolutivo. De igual modo estalaram “as molduras” dessas civilizações»

Cortesia de wikipedia

«(…) Magalhães Godinho formula a pergunta, o que é que significa descobrir? e dá-nos duas respostas bastante diferentes. Por um lado:
  • Descobrir, descoberta, portanto revelação das partes escondidas do mundo, a conjunção do Oriente e do Ocidente, a busca de novos caminhos e de novas paragens e gentes, culminando no encontro e na exploração metódica (achamento, descobrimento) de novos mundos, suscitando o espanto da novidade.
E, por outro lado:
  • Descobrir: construir o espaço operacional; por conseguinte, instrumentos físicos, a bússola, o astrolábio, a sonda, a corda de nós, o compasso, modos de agir sobre o real, mas também a ferramenta mental de trigonometria da toleta de marteloio, o sistema de referenciais e coordenadas, a preocupação da medida, a precisão descritiva. Construção do espaço ligada à construção do tempo, as estações das viagens, as horas das marés, a duração dos percursos de ida e de volta, os prazos dos pagamentos e das letras ou dos contratos; a transmissão de notícias vindas frequentemente de muito longe e por caminhos difíceis (da Índia a Portugal, com passagem por Ormuz e pelo Cairo, ou Damasco, e o Mediterrâneo).
Nestas duas definições, separadas por apenas quatro páginas, Magalhães Godinho aponta sucessivamente para as bases concretas da descoberta e para o seu impacto sócio-cultural sobre os dois lados desse encontro, um encontro, não o esqueçamos, que é imposto, frequentemente, contra a vontade dos que são assim descobertos, um encontro que trouxe tantos males como bens, um encontro que não foi nem absorvido nem apreciado plenamente até aos nossos dias. Proponho-me desenvolver três temas propostos por Magalhães Godinho na sua colecção de ensaios que intitulou Sobre teoria da história e historiografia: a história tornou-se geográfica; a história fala de uma actividade pluridimensional, mas única; o passado relativiza-se no presente.

A história é geográfica
A história torna-se hoje geográfica. Não se trata já desta velha história nem desta velha geografia. A história torna-se hoje geográfica porque transpõe para o passado o problema que a geografia humana encara no presente: as relações entre o meio fisico-biológico e as sociedades humanas. Desagregaram-se, para a historiografia, os gigantescos blocos espácio-temporais, com características imutáveis, a civilização egípcia, a civilização helénica, a civilização medieval, corroídos pelo sentido evolutivo. De igual modo estalaram as molduras dessas civilizações. Não há que transpor para o passado as realidades geográficas de hoje; há, sim, que estabelecer a própria história do meio físico-biológico e das relações com os diferentes povos. In Godinho, 1971
Estabelecer as relações entre as realidades físico-biológicas e a história humana, uma reivindicação basilar da tradição dos Annales, faz parte do ataque desta às simplificações da velha história, baseada em acontecimentos, puramente político-diplomática, e da velha geografia, que ignorava largamente o impacto fundamental da vida social humana sobre a Terra. No início do século XXI, num momento em que floresce a história ambientalista, uma tal afirmação parece banal. Mas mesmo hoje em dia a luta para que se leve a sério esta simbiose não está concluída. Há 30 ou 40 anos, raras eram as revistas, os historiadores que seguiam essa exigência.
Parece claro que a ecologia não é uma essência, mas uma existência, o resultado da interacção perpétua entre todos os elementos diversos que existem no universo e, mais particularmente, na nossa Terra. Tudo o que foi fundamental na história humana, a criação das ferramentas, as agriculturas, a mecanização, o controlo das energias, transforma a Terra, valoriza e/ou desestabiliza ou destrói formas de vida animais e vegetais, reestrutura a geografia e a geologia, utiliza e esgota recursos minerais. Nenhuma acção humana é neutra ou sem consequências. Mas recordemos a insistência de Magalhães Godinho na ruptura dos séculos XV e XVI, ruptura social para a humanidade. Que impacto teve esta ruptura sobre as relações entre o mundo físico-biológico e o mundo humano? Ela foi também uma ruptura ecológica? Vejamos. Essa ruptura transformou a estrutura ecológica da Terra de duas maneiras: a reorganização espacial da produção primária; a destruição maciça dos elementos produtivos da Terra. Nem uma nem outra foi inventada pelo mundo moderno. Mas a extensão e rapidez destas transformações e a irreversibilidade de uma parte delas, sem a mínima discussão colectiva sobre os seus benefícios e malefícios, deixa qualquer analista sério estupefacto». In Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde; Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69, 2004.

Cortesia de wikipedia/JDACT