sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Isabel de Castela e Maria de Castela. Duas Irmãs para um Rei. Isabel Guimarães Sá. «As suas cartas, correspondeu-se com centenas de pessoas, formam o famoso “Epistolário”, e fornecem preciosas informações sobre a corte dos Reis Católicos e a descoberta do Novo Mundo, ainda que o autor tenha tendência a exagerar nas suas narrativas»

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As Fontes. Vários cronistas espanhóis e também alguns italianos
«(…) Não presenciou, mas sobretudo leu. Ao contrário de outros autores, não troca nomes nem títulos, e os seus textos acusam indesmentível rigor. As suas crónicas, repletas de intrigas, algumas delas envolvendo Portugal. Não sabemos se são inteiramente verdade, mas muitas vezes lançam novas luzes sobre a tomada de decisões políticas por parte do papa, dos Reis Católicos ou dos reis portugueses. Adiante veremos... E agora, apresentemos um autor fundamental, que não foi cronista, mas ao qual se devem muitas informações sobre a corte dos reis, e, na parte que nos toca de mais perto, ao ambiente no qual cresceram as nossas princesas: Pietro Martire d'Anghien (1457-1526), Pedro Mártir de Anglería para os espanhóis. Era, tal como o nosso Cataldo Parísio Sículo, que permaneceu na corte de João II de Portugal e foi preceptor do seu bastardo Jorge, um dos muitos humanistas italianos que buscavam honra e glória longe da sua Itália natal. Estes homens de letras emigrados eram quase sempre os menos dotados do ponto de vista intelectual e artístico, quando confrontados com os grandes nomes do humanismo italiano, mas fixavam-se nas cortes que os recebiam. O latim, que dominavam na perfeição, juntamente com o conhecimento dos autores clássicos, eram fundamentais para lhes garantir um lugar como embaixadores ou preceptores dos jovens nobres. Pedro Mártir (vamos chamar-lhe assim daqui em diante, por comodidade) era, não siciliano como Cataldo, mas provinha da região de Milão, e chegou a Espanha em 1487, depois de uma passagem por Roma, para onde fora aos 20 anos. Um embaixador espanhol na corte papal trouxe-o para Espanha, onde se radicou até ao final da vida. Ensinou na Universidade de Salamanca e foi depois capelão de Fernando e Isabel. Em 1492, a sua mais importante tarefa era ensinar os jovens da corte: a título de curiosidade, diga-se que foi preceptor dos filhos do degolado duque de Bragança, o depois duque Jaime e seu irmão Dinis. O viajante alemão Jerónimo Münzer cifrou o número dos seus alunos em quarenta: moços esclarecidos, servidores da Casa Real. Em 1501 foi enviado ao Egipto em missão diplomática, e continuou ao serviço de Fernando, o Católico, depois da morte de Isabel I de Castela em 1504. As suas cartas, correspondeu-se com centenas de pessoas, formam o famoso Epistolário, e fornecem preciosas informações sobre a corte dos Reis Católicos e a descoberta do Novo Mundo, ainda que o autor tenha tendência a exagerar muitas das suas narrativas. São mais de 650 cartas, distribuídas por três volumes.
Lúcio Marineo Sículo (c. 1444-1533) foi outro humanista em exílio voluntário junto da cone dos Reis Católicos, e, tal como os restantes, exerceu funções de preceptor de jovens nobres, depois de ter passado pela Universidade de Salamanca. Fernando, o Católico, chamou-o para junto de si, nomeando-o seu capelão e cronista. Escreveu várias crónicas, entre as quais a Crónica de Aragão e a Vida y hechos de los Reyes Catolicos, e ainda a obra De las cosas memorables de España, e é autor de um epistolário, tal como Pedro Mártir, embora menos interessante que o deste último. O conjunto de italianos não fica por aqui, devendo ainda referir-se Marino Sanuto (1466-1536), nativo da Sereníssima República (de seu nome original Marin Sanudo), onde exerceu actividade política. Escreveu um diário em 58 volumes que consiste num relato minucioso da política veneziana, conhecida por estar a par de tudo o que de importante se passava na Europa graças a um serviço de informações veiculado por espiões e outros informadores. Aí registou toda a informação veneziana em torno da política e dos mercados europeus. Uma espécie de diretório das informações da espionagem veneziana do tempo: à Sereníssima chegavam notícias de todo o mundo conhecido, desde os preços das especiarias asiáticas praticados em Lisboa até ao que se passava nas salas de audiência da Santa Sé. São de Sanuto algumas notícias sobre as cortes portuguesa e espanhola que usaremos neste estudo.
É necessário referir que os reis, sobretudo Isabel I, foram controversos mesmo para os seus contemporâneos. O facto de esta se ter sentado no trono depois de uma guerra de sucessão, e de ter suplantado uma rival cuja ilegitimidade era discutível, fez aumentar a importância da propaganda política. Isabel tinha, de demonstrar a sua legitimidade como rainha face não apenas a Joana de Trastâmara, filha do seu meio irmão, como também em relação ao marido. Muitos havia, sobretudo em Aragão, onde a tradição favorecia o sistema sálico (segundo o qual o trono podia ser herdado apenas por varões e transmitido por linha masculina), que consideravam que o papel de rei cabia apenas ao seu marido, Fernando de Aragão, também ele um Trastâmara, que devia reinar em nome da mulher. Isabel recusou-o liminarmente, como se sabe. Muitos, como o cronista Afonso de Palencia, achavam desadequado que uma mulher reinasse, e Isabel, a Católica, teve de criar uma imagem que o desmentisse». In Isabel Guimarães Sá, Rainhas Consortes de D. Manuel I, Isabel de Castela, Maria de Castela e Leonor de Áustria, C. de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4710-6.

Cortesia de CL/JDACT

Isabel de Coimbra (1432-1455). A Rainha Triste. Ana Maria Rodrigues. «Depois da partida de Isabel para Portugal, Elionor de Urgell ficou a viver com Barutell até ao assassinato deste, em 1432. Nessa data, a esposa de Alfons V a rainha Maria, que já tinha a seu cargo a irmã mais nova da fratria, Joana de Urgell…»

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Educada para reinar. Uma infância coimbrã
O destino da esposa e das filhas do conde de Urgell
«(…) Quanto à infanta Isabel, que suportara o cerco de Balaguer grávida, foi enviada juntamente com as suas filhas para o mosteiro de Sixena, onde tradicionalmente eram educadas as meninas da Casa Real. Aí, deu à luz Joana, nascida em 1413. Cerca de um ano mais tarde, Ferran I descobriu que a infanta se correspondia com a duquesa de Berry, procurando obter dela que se ocupasse da manutenção e educação das suas filhas mais velhas, Isabel e Elionor uma das quais os partidários de Jaume de Urgell queriam casar com o herdeiro do duque de Bourbon. Assim, a 14 de Abril de 1415, o soberano mandou o procurador-geral do ducado de Urgell, Ramon d'Empúries, buscar as duas donzelas ao mosteiro e levá-las para Valencia. Desta viagem existe um relato feito pelo referido oficial; por ele, sabemos que viajaram acompanhadas por uma dona, duas donzelas e uma servente, e que foram transportadas em andes por terra, seguindo depois de barco sobre o rio Ebro. Em Valencia, Isabel e Elionor permaneceram algumas semanas em casa de Jaume Sensuri, capelão de sua mãe. A 24 ou 25 de Julho, acompanhadas por Sibil-la e Francina de Fortià, provavelmente duas parentes de sua avó que haviam seguido sua mãe quando esta se casara, iniciaram uma nova e mais longa viagem em direcção a Castela, onde ficaram à guarda de Leonor de Alburquerque, viúva de Ferran I.
A pequena Joana ficou com a mãe no mosteiro de Sixena até que Alfons V decidiu restituir à infanta o respectivo dote, confiscado pelo seu falecido pai. Em Outubro de 1417, Isabel de Aragão recebeu do soberano a vila de Alcolea de Cinca, valorizada em 60 000 florins, mais um certo montante em rendas de Balaguer até perfazer o que faltava para atingir as 50 000 libras barcelonesas. A infanta instalou-se então nessa vila com a filha mais nova, onde viveu até à sua morte, ocorrida a7 de Novembro de 1424. Curiosamente, em Março desse ano havia sido dado um tutor às três filhas do conde de Urgell, um parente seu que era arcediago da Igreja de Santa Maria del Mar de Barcelona e mais tarde veio a ser cónego de Lleida, Berenguer Barutell. Talvez a infanta Isabel já estivesse então doente e fosse possível antever-lhe um fim próximo. O certo é que foi esse tutor quem serviu de procurador a Isabel quando se efectuaram as negociações que levaram ao seu casamento com o infante Pedro de Portugal, em 1428. Nessa altura, a referida donzela estava a residir em Alcolea de Cinca. É, portanto, de presumir que, dois anos antes, quando Leonor de Alburquerque levou sua filha Leonor para Barcelona com o intuito de preparar o respectivo casamento com o herdeiro do trono português, ter-se-á igualmente feito acompanhar por Isabel de Urgell e talvez também pela irmã desta, Elionor.
Depois da partida de Isabel para Portugal, Elionor de Urgell ficou a viver com Barutell até ao assassinato deste, em 1432. Nessa data, a esposa de Alfons V a rainha Maria, que já tinha a seu cargo a irmã mais nova da fratria, Joana de Urgell, desde a morte da mãe, fez ver a Elionor a conveniência de regressar ao mosteiro de Sixena ou ingressar no convento das menoretes de Lleida. Como a donzela não se mostrasse muito entusiasmada com tal solução, foi consultado o conde de Urgell, que lhe ordenou acatasse a vontade real. Não se sabe, porém, em que cenóbio se recolheu Elionor até à data de seu casamento. Como Alfons V não teve filhos nem filhas de sua esposa, usou as suas jovens primas de Urgell para estabelecer alianças, como mais tarde usará as suas sobrinhas, infantas de Portugal. Inicialmente, pensou em casar Elionor e Joana com o rei Janus de Chipre e o respectivo filho, mas a morte daquele soberano, em Junho de 1432, pôs fim às negociações. Em Maio de 1438, deu Elionor em casamento a Raimondo Orsini, conde de Nola, como compensação por ele ter abandonado o partido do rei de Nápoles e ter-se juntado ao seu, o que veio a facilitar a conquista desse reino.
Segundo Ryder, a jovem resistiu à união e teve praticamente de ser arrastada à força para a galera que a levou para Itália. O rei Duarte, o infante Pedro e até o rei de Castela insurgiram-se contra a violência que era obrigar a filha de uma infanta de Aragão a unir-se a um homem de nível inferior ao seu, mas nada demoveu o monarca aragonês. Veremos que Pedro até ao papa recorreu para tentar evitar à sua cunhada tal infortúnio. Quanto a Joana, Alfons V casou-a com o conde Jean III de Foix, de quem ela ficou viúva ao fim de pouco tempo. Obrigou-a, então, a regressar a Aragão para a casar com Joan Ramon Folch, conde de Cardona e Prades». In Ana Maria S. A. Rodrigues, As Tristes Rainhas, Rainhas de Portugal, coordenação de Ana Maria S. A. Rodrigues, Isabel Guimarães Sá, Manuela Santos Silva, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4708-3.

Cortesia de CL/JDACT

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A Bela Poesia. Natália Correia. A Arte. «Se tu viesses cavaleiro branco orvalhado pela manhã do meu instinto. E ficasses a chamar-me como um canto no porvir do nosso último recinto! Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa das praias donde Maio se retira, enrolados nos panos duma paisagem silenciosa que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!»

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Elegia dos Amantes
Lúcidos Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
o contorno lunar da noite que te finge!

Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
que fosse a sensibilidade deste pensamento
com que a minha sombra vai pensando o meu destino.

E não houvesse o sono dum telhado
entre ter de haver eu e haver o tecto;
e a eternidade não estivesse ao lado
a colocar-nos nas costas as asas dum insecto.

Meu amor, meu amor, teu gesto nasce
para partir de ti e ser ao longe
a cor duma cidade que nos pasce
como a ausência de deus pastando um monge.

Ah, se uma súbita mão na hora a pique
tangendo harpas geladas por segredos
desprendesse uma aragem de repiques
destes sinos parados pelo medo!

Mas só porque vieste fez-se tarde,
ou é a vida que nasce já tardia
como uma estrela que se acende e arde
porque não cabe na rapidez do dia?

Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:
uma inflação de deuses que não pode parar
como um pássaro cego à nora da intriga
que é a morte no centro connosco a circular.

Será o mesmo tempo que nos cabe?
Talvez sejas a raça prematura
duma gota de orvalho que se há-de
negar à minha sede desértica e futura.

Como o brilho dum sol partido ao meio
damos luz pela nostalgia da metade.
Partes para ser gaivota no meu seio.
Mas não trazes no bico uma cidade.

Aqui pousou um pássaro de lume
que deixou um voo subterrâneo
na repetida vibração do gume
que cada hora traz à lâmina do crânio.

Teus dedos num relógio como a picada duma abelha
a fabricar o mel da estação perdida!
Que quanto a primavera um rouxinol na telha
é toda a melodia que traz na unha a vida.

O navio tem dois extremos ermos:
os cabelos para Vénus e os pés para Marte.
Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos.
E com lenços à vista ninguém parte.

Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me
como uma pedra pelas minhas mãos futuras
e ficasse para sempre a aquecer-me
ao sol que cega efémeras criaturas!

Se soltasses as aves da rotina
e de um jorro de deuses abrisses a comporta
e reclinada em tua espádua genuína
eu entrasse num céu sem ter que achar a porta!

Se tu viesses cavaleiro branco
orvalhado pela manhã do meu instinto.
E ficasses a chamar-me como um canto
no porvir do nosso último recinto!

Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa
das praias donde Maio se retira,
enrolados nos panos duma paisagem silenciosa
que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!

Ah, as sementes que te exigem em declive
entre abismos onde nunca te despenhas
e esfumados voos em que te embebes e revives
o que de ti já pousou no cume das montanhas!

Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta
na incontinência do voo que a abrasa.
Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta.
Se houver uma casa sem tecto, talvez seja a casa.
Poema de Natália Correia, in ‘Passaporte’

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A descoberta da economia-mundo. Immanuel Wallerstein. «… pelo menos durante alguns séculos, pela criação de uma força de trabalho coagida, servos e corveia, escravos, peones, la mita. E como os habitantes locais muitas vezes resistiram a um tal trabalho, era preciso ou proibi-los de se deslocarem…»

Cortesia de wikipedia

A História é Geográfica
«(…) Antes de mais, reorganização. Para optimizar a produção rentável é necessário, como toda a gente reconhece, especializar-se. Para os economistas clássicos, a especialização é uma escolha feita de comum acordo pelo empresário e o trabalhador que maximiza as vantagens para todos. Mas no mundo real, como toda a gente sabe mesmo se se recusa a admiti-lo, a escolha é imposta e é vivida com muito sofrimento pela grande maioria das pessoas. Talvez que no início dos descobrimentos o objectivo e mesmo a realidade do comércio fossem a troca de produtos que cada um dos lados já produzia, a troca mais ou menos igual de um excedente mais ou menos natural. Mas o comércio rapidamente se inclinou numa direcção inteiramente diferente. Os que eram mais fortes, e, desde os descobrimentos, esses eram quase sempre os europeus, impunham uma produção primária aos povos com quem faziam trocas. Lentamente aqui, mais rapidamente acolá, a Europa exigia o desenvolvimento de uma produção primária especializada, diferente segundo as regiões, uma produção das culturas comerciais (cash crops, como dizem os historiadores) ou uma produção orientada para a exportação (como dizem hoje em dia os economistas).
É preciso pensar em tudo o que implica a criação de uma tal produção primária. Antes de mais, há que escolher o terreno para a implantação. E normalmente, necessariamente, há que deixar de fazer uma outra coisa nesse terreno. Esta outra coisa era muitas vezes, talvez sempre, uma produção alimentar para o consumo local. É necessário, pois, substituir esta produção alimentar local por uma qualquer importação, por vezes, de uma região vizinha, por vezes, de terras distantes. E como esta nova produção dos cash crops exige por via de regra trabalhadores mais ou menos permanentes, bem enquadrados, coloca-se o problema do seu recrutamento e da sua manutenção, um problema resolvido com muita frequência, pelo menos durante alguns séculos, pela criação de uma força de trabalho coagida,  servos e corveia, escravos, peones, la mita. E como os habitantes locais muitas vezes resistiram a um tal trabalho, era preciso ou proibi-los de se deslocarem ou importá-los de outro lado, o que criou outras formas de comércio, o trato de escravos, os contratados.
Este processo de periferização das zonas onde eram impostos trabalhos forçados ou coagidos implicava uma transformação das zonas centrais. Não insistirei sobre os processos mundiais de industrialização nem sobre a constante transformação de tudo em mercadoria. É a história do capitalismo enquanto sistema. Assinalo simplesmente que o resultado, ao fim de 500 anos, é uma polarização global nos planos económico, social e político, que não cessa de aumentar. Já não existem zonas relativamente estáveis do ponto de vista cultural. As identidades são reivindicadas no seio de uma turbulência enorme e perturbadora. Os ódios inter-étnicos constroem-se através do recurso a uma historicidade que tem uma existência muito débil. E, geograficamente, as pessoas já não estão de modo nenhum onde estavam há 500 anos. As migrações sobrepõem-se às radicações ditas tradicionais. Em segundo lugar, destruição. Em 500 anos da vida do sistema-mundo moderno, a vida na Terra transformou-se mais rapidamente do que jamais havia acontecido. Não estou certo de que possa dizer-se que esta transformação foi maior do que qualquer uma outra. Mas o que pode dizer-se é que esta transformação criou uma série mais vasta de perigos à continuação saudável do nosso mundo social do que qualquer uma outra desde o começo daquilo a que chamamos a vida histórica da humanidade, por exemplo, destruição em curso da camada de ozono, enfraquecimento da diversidade biogenética, diminuição na Terra da vida biótica essencial para a sua regeneração, aquecimento da Terra, e assim por diante». In Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69, 2004.

Cortesia de RCSociais/JDACT

Guerra. Diplomacia e mapas. A Guerra da Sucessão Espanhola. O Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville. Júnia Ferreira Furtado. «O engenheiro Manoel Azevedo Fortes foi escolhido o primeiro regente da Aula Régia de Fortificação Militar em Lisboa e, sob protecção régia, publicou manuais técnicos que pretendiam orientar a formação dos engenheiros…»

Cortesia de wikipédia

Guerra e cartografia
«(…) Luís Serrão Pimentel (1613-1679) foi o grande representante de uma linhagem de grandes cosmógrafos portugueses ao serviço do Estado, tendo reunido os empregos de cosmógrafo-mor do reino, engenheiro-mor do reino e tenente general da artilharia. Observa-se nas suas qualificações como engenheiro e tenente de artilharia que, inicialmente, a actividade de cosmógrafo abarcava também produzir conhecimentos úteis às actividades militares, tais como planear fortificações, armamentos e produzir mapas para auxiliar o deslocamento de tropas pelo território. Luís Pimentel ocupava o cargo quando se deu a Restauração portuguesa, em 1640. A necessidade de organizar a defesa do reino para resistir às tentativas de recolonização espanhola tornou-se premente. Para melhor preparar um corpo de técnicos especializados, logo nas cortes reunidas em 1641, [Pimentel] propõe a criação de uma aula de fortificação e arquitectura militar na Ribeira das Naus em Lisboa.
Como no restante da Europa, a progressiva especialização do conhecimento cosmográfico, separado do geográfico, também levou em Portugal à divisão do cargo. Foi assim que Luís Pimentel, proprietário de um carácter hereditário, no terceiro quartel do século XVII, o dividiu entre seus dois filhos: Manoel e Francisco. O primeiro ficou como cosmógrafo e lente da aula de Navegação, o segundo como engenheiro e lente da aula de Matemática. A partir deste momento cosmografia e engenharia tornaram-se actividades relativamente distintas em Portugal, mas fortemente conectadas (inclusive pelos laços familiares dos detentores dos cargos de cosmógrafo-mor e engenheiro-mor). Ao primeiro coube principalmente os conhecimentos relativos à navegação marítima e ao segundo, os da arte militar e do território, ambos cada vez mais sob o primado da matemática e da geometria. Monarca ilustrado, João V (1706-1750) promoveu uma série de reformas no seu reinado. Uma delas abrangeu a reorientação na formação de engenheiros militares, com a criação da Aula Régia de Fortificação Militar em Lisboa. Os engenheiros militares eram os principais encarregados de produzir uma cartografia de Estado e a Aula Régia formava os engenheiros segundo os mais modernos métodos nas áreas de construção de fortificações, de artilharia militar e da cartografia, constituindo um conhecimento cada vez mais dominado pela geometrização e a matematização do mundo. Consoante com as novas observações e medidas tomadas directamente no território, utilizava instrumentos cada vez mais modernos e aperfeiçoados. Acompanhando essa mesma tendência de especialização do conhecimento e universalização de seus métodos, aulas régias de geografia, voltadas principalmente para as actividades militares, foram criadas em várias cortes europeias nessa mesma época.
O engenheiro Manoel Azevedo Fortes foi escolhido o primeiro regente da Aula Régia de Fortificação Militar em Lisboa e, sob protecção régia, publicou manuais técnicos que pretendiam orientar a formação dos engenheiros na maneira adequada de produção das cartas, com vistas à uniformização das técnicas e uma linguagem mais universal. Seus dois livros intitulam-se Tratado do modo o mais fácil de fazer as cartas geográficas assim de terra como de mar, e tirar as plantas das praças (1722) e O Engenheiro português (1729). Estes manuais pretendiam normalizar as formas de representação do espaço, sugerindo, entre outros tantos temas, a adopção de símbolos geográficos mais esquemáticos, as maneiras apropriadas e os instrumentos adequados para a tomada das medidas dos terrenos, as formas como deveriam ser coloridos os mapas e a maneira ideal de representar os acidentes geográficos. No contexto da criação da Academia Real da História Portuguesa, Azevedo Fortes foi nomeado pelo rei para se ocupar das questões de Geografia, reflexo da importância desse conhecimento para a escritura da História. Afinal, esta se desenrolava no interior de um espaço imperial que precisava ser mais bem conhecido, tanto o reino, quanto as conquistas ultramarinas, sendo a confecção dos mapas um importante instrumento para sua realização.
Apontando para essa associação entre guerra e mapas, tendo como palco a Guerra da Sucessão Espanhola, D’Anville desenhou um mapa das operações militares portuguesas que ocorreram entre Almeida, em Portugal, e Ciudad Rodrigo, na Espanha. A carta intitulada Carte des opérations militaires dans la région située entre Alcantara et Almeida, autour de Ciudad Rodrigo, ilustra o recuo progressivo do acampamento espanhol, o avanço das tropas portuguesas comandada pelo 4º. marquês das Minas, António Luís Sousa, em direcção ao território de Espanha, e o sítio montado ao redor de Ciudad Rodrigo, a partir de 2 de Maio de 1706. Este foi um episódio marcante na Guerra, pois nos dois anos anteriores, desde a entrada de Portugal no conflito, as operações militares haviam sido caracterizadas pelo avanço dos espanhóis sobre o seu território, o que devastou as províncias das Beiras e do Alentejo». In Júnia Ferreira Furtado, Guerra, Diplomacia e mapas, a Guerra da Sucessão Espanhola, o Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville, revista Topoi, v. 12, nº 23, 2011.

Cortesia de Topoi/JDACT

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Guitarra. Andaluzia. Homenagem. «Y como si hoy estuvieran solos los hombres de edad, y las mujeres de espera y los jóvenes de amor. Como si el mundo no fuera hoy tu apoyo y tu vigor: miles de manos y fuegos de millones en un haz; de soldados, de labriegos, de los que llenan la paz»

Cortesia de wikipedia


«En tu peñón solitario
lleno de olvido y dolor,
estrictamente salario,
perpetuamente sudor.
En tu girón de archipiélago
de ron y cañaveral,
chupado por el murciélago
numeroso del central.
En tu estirpe de malarias
secretas como tu voz,
llena de angustias agrarias
y de silencio feroz;

Dominí, no estás solo,
no estás solo, Dominí.
Del ecuador hasta el polo
el mundo lucha por tí.
A pesar de tantos daños,
tanto silencio, a pesar
de tantos sufridos años
sin comprender, sin pelear;
a pesar de que tu islote
cierra el horizonte y vas
solo como un galeote
solo y sin brisa quizás;

Dominí, no estás solo,
no estás solo, Dominí.
Del ecuador hasta el polo
el mundo lucha por tí.
Y que tus golpes los cargas
en tu solitaria piel,
y que tus noches amargas
te son solas, te son hiel;
Dominí, no estás solo,
no estás solo, Dominí.
Te acosa el hambre y el dolo,
sólo que tú no estás solo,
y hoy que miran hacia tí
tantos hombres y mujeres
¿qué te pasa, Dominí?

Hay un mundo de quehaceres
y tú duermes o algo así.
O algo más entrañado...
Como si una soledad
desenvolviera a tu lado
sólo sombras, sólo edad.
Como si el tiempo y el agua
que sollozan en tu pie,
o el sol que nace en la fragua
y va a morir al café,
o la niña junto al río
y tú en tu cañaveral
y la tierra y el bohío
fueran todos del central
y el hambre y los goterones
de sangre y lágrimas y
sudor agrio, en los terrones
de tu patria, para tí
fueran solamente. Fueran
sólo de tu soledad.

Y como si hoy estuvieran
solos los hombres de edad,
y las mujeres de espera
y los jóvenes de amor.
Como si el mundo no fuera
hoy tu apoyo y tu vigor:
miles de manos y fuegos
de millones en un haz;
de soldados, de labriegos,
de los que llenan la paz
de alegría y de esperanza,
de los que van al taller
o vienen de la labranza,
de los que saben leer...

De aquél que no, pero sabe
tu lomo herido y tu voz,
llena de un silencio grave
y de un agravio precoz.
Del ecuador hasta el polo
hoy todos luchan por tí.
Te acosa el hambre y el dolo
sólo que tú no estás solo
¡Dominí, no estás tan solo,
no estás solo, Dominí!»

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Homenagem. Adriano Correia de Oliveira. As minhas Barbas. Óscar Lopes. «… um “poeta em acção”, um poeta que tende para o homem responsável e total. A sua canção tem o seu ponto de partida mais reconhecível no fado estudantil coimbrão, lírico, com uma linha melódica apoiada na guitarra e/ou viola»

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«Uma das feições mais salientes da nossa vida artística dos anos 60 é o regresso da poesia de grande publico à sua relação conjugal com a música. Essa reconciliação entre a música e a poesia de intervenção cívica integra-se então numa voga internacional de balada democrática e, entre nós, está em estreita relação com os movimentos estudantis que marcaram o início e o final desse decénio de 60. É certo que a tradição de poetar directamente para o violão vinha já de João de Deus e até do árcade de origem brasiIeira Caldas Barbosa, que se auto-alcunhou de Calda de Açucár. É certo que Augusto Gil e António Nobre escreveram quadras vocacionadas para o canto; e, quer o fado lisboeta, quer o fado coimbrão estão ligados a uma vária autoria poética a que conferem, por vezes, uma espécie de consagração pelo anonimato. Mas a poesia de resistência dos anos 60 deriva mais directamente daquela que, pela mão por exemplo de Carlos de Oliveira e Gomes Ferreira, assinalou o primeiro alento de luta política democrática do final da II Guerra Mundial. Mais tarde, após o 25 de Abril, surgirão realizações de uma poesia não apenas unida à música vocal e instrumental, mas ainda ao teatro, ao espectáculo em geral, e, em suma, àquilo que poderíamos chamar a arte total em acção.
Permita-se-me lembrar que a palavra de étimo grego drama designava, na origem, precisamente isto, poesia em acção, e que a palavra de étimo latino actor equivale originariamente a agente, pois as peças de teatro eram, em latim, concebidas de início como res gerendae, o que também se pode traduzir por poesia em acção. Adriano Correia de Oliveira é um poeta em acção, um poeta que tende para o homem responsável e total. A sua canção tem, sem duvida, o seu ponto de partida mais reconhecível no fado estudantil coimbrão, lírico, predominantemente elegíaco, com uma linha melódica apoiada na harmonização à guitarra e/ou viola, e um páthos tipicamente romântico nos portamentos que prolongam ad libitum as sílabas tónicas das palavras de efeito. Mas os dois grandes temas da juventude académica de então eram as guerras injustas e dementadas contra os povos colonizados e aquele conjunto de aspirações que se exprime pela bela palavra liberdade. O soldado que vai à guerra e volta num caixão de pinho é a projecção de um destino provável para esses jovens que, em termos cantados pelo nosso trovador, fazem da capa negra a bandeira da liberdade. Para alguns, essa liberdade cingia-se às tradições liberais e à oposição a uma guerra que, no nosso tempo, parecia já, evidentemente injusta, por uma razão que os antigos liberais, paradoxalmente, ainda não eram capazes de ver. Mas Adriano Correia de Oliveira esteve desde cedo e até à morte com aqueles para quem a liberdade se concretiza em metas como a abolição da exploração pela mais-valia, como a libertação da terra latifundiária, como a realização programática e até constitucional das melhores virtualidades humanas, individuais e colectivas, e como a autêntica autodeterminação nacional, na economia e também na cultura.
E é para cantar todas estas liberdades, formais e reais, que Adriano mobiliza símbolos que vêm de toda a tradição poética portuguesa: são as barcas que já para a guerra levavam, à amiga, o amigo das cantigas trovadorescas de Martim Codax; são as águas, que constituem o arquétipo das almas apaixonadamente livres da Menína e Moça de Bernardim; e é o vento, símbolo romântico, e, entre nós, herculaniano, da paixão e da revolta. E nos poemas cantados por Adriano são ainda bem legíveis as tradições trágico-marítimas de cinco séculos, são-no traços satíricos populares da Restauração antifilipina, contra a integração de Portugal na grande Europa reaccionária de então dos Habsburgos, são-no legíveis motes dos liberais cercados no Porto em 1832, da insurreição patuleia e da propaganda republicana. E, para além destas vozes históricas, há timbres vocais específicos que assinalam regiões várias da nossa sensibilidade popular». In Óscar Lopes, Homenagem a Adriano Correia de Oliveira, Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Oficina Musical, Porto, 1986.

Cortesia de OMusical/JDACT

Flamengo. Paco de Lucia. «Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser. Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma»

Cortesia de wikipedia

«Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilizacão de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser. Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou. Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste. O último rasto de influência dos outros no meu carácter cessou com isto. Reconheci — ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de lançar o Interseccionismo, a tranquila posse de mim. Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci».


JDACT

As Mãos e o Espírito. Ensaio. Óscar Lopes. «…. o punho cerado faz de martelo, as unhas são como brocas ou puas, ganchos ou pregos, ou garfos, etc.; a palma da mão é o esboço de uma colher, de uma concha, de uma pá, de um copo, de um balde»

jdact e wikipedia

As mãos e o espírito
«A história do homem na terra pode dizer-se que principia com um diálogo entre a mão e o cérebro. O homem tem de comum com os antropóides superiores duas coisas importantes: a posição erecta e a capacidade de opor o dedo polegar aos outros dedos. Mas foi só com o homem que se produziram as consequências mais notáveis destes dois factores. A posição erecta, libertando da marcha os braços, perrnitiu que as mãos humanas se diferenciassem consideravelmente dos pés, tanto na sua anatomia como nas suas funções; por outro lado, a posição erecta permitiu que a massa encefálica se desenvolvesse em peso, equilibrando-se verticalmente ao alto da coluna vertebral, em vez de pender desequilibradamente numa extremidade horizontal da espinal-medula. Deste modo, as mãos puderam aperfeiçoar esse maravilhoso sistema complexo de manobra constituído pelas alavancas variadíssimas que são os ossos e os músculos dos dedos, e servido ainda pelos cinco ossos do carpo, os oito do metacarpo, os dois do antebraço, e o do braço. A mão é já'um esboço de todos os instrumentos imagináveis: o punho cerado faz de martelo, as unhas são como brocas ou puas, ganchos ou pregos, ou garfos, etc.; a palma da mão é o esboço de uma colher, de uma concha, de uma pá, de um copo, de um balde, etc.; entre os dedos dobrados pode correr uma corda como numa roldana; os dedos e o pulso podem ser accionados rotativamente a fazer de bobina, etc. Se continuássemos a examinar, encontraríamos ainda na mão funções comparáveis às de chaves, rolhas, torneiras, amortecedores de choque, molas, etc. Estas funções complicadas, que fazem da mão o primeiro e o mais importante de todos os instrumentos, e até o instrumento humano por excelêncía, dependem de sistemas especiais de controle em regiões determinadas do cérebro.
Por outro lado, o desenvolvimento das funções de relacionação no cérebro pode fazer-se porque o complicado poder de manobra da mão humana permitiu o aligeiramento da pesada mandíbula e da tremenda dentição que o homem primitivo herdara dos seus antepassados animalescos. Como a mandíbula passou a ser vantajosamente substituída pelas mãos em muitas funções, o seu peso e volume puderam diminuir, e diminuiu a musculatura que até então comprimia as paredes do crânio, impedindo o desenvolvimento do cérebro. O atrofiamento da mandíbula e da dentição acarretou, por isso, o encorpamento do lóbulo frontal do cérebro que é, digamos simplificadamente, a sede do pensamento superior e da linguagem. Como se vê, a mão e o cérebro, a acção e o pensamento, a prática e a teoria estão indissoluvelmente ligados desde que o homem é homem. Mas a mão não se limita a executar ordens; é também órgão fundamental de investigações. Ora vejamos. O espírito humano está continuamente a responder a perguntas que selecciona no mundo exterior através do complicado sistema telegráfico montado no seu corpo a que chamamos os sentidos, os cinco sentidos, como geralmente se diz, os onze sentidos, como se estuda nos manuais de Psicologia, ou, mais rigorosamente ainda, a inumerável quantidade de sentidos constituídos por inúmeras terminações nervosas diferentes, que transmitem impressões de frio, calor, peso, distância, as cores e intensidades da luz, as múltiplas qualidades dos sons, dos sabores, dos contactos, das pressões, etc., etc.
Algumas destas mensagens telegráficas captadas pelos sentidos vêm de emissores relativamente longínquos, como as que são transmitidas através da vista, do ouvido, ou do olfacto; outras vêm do interior do corpo, como a sede, o enjoo, o sono; outras necessitam de um contacto da pele, e lá estão as mãos, os dedos, como um aparelho de sondagem rigorosa, projectando-se a meio metro de distância do corpo em qualquer direcção, adaptando-se a qualquer superfície ou volume. Os dedos são os olhos de ver ao perto, e tão úteis aos outros olhos, propriamente ditos, de ver ao longe, que nos é impossível compreender uma cena distante sem adivinharrnos se se trata de coisas lisas ou rugosas, delgadas ou espessas, frias ou quentes; ao passo que um cego, e até um cego e surdo de nascença, pode compreender o mundo através, principalmente, das mãos. Mas aonde pretendo chegar com isto? Pretendo concretizar a tese desta palestra. Imaginemos que todo o ser humano se reduz a duas coisas: a mão que actua, que executa movimentos e também que tateia, sonda o mundo exterior e transmite sinais; e o espírito, relacionado sobretudo com o sistema nervoso central, especialmente com o cérebro, que coordena esses sinais e que dirige os movimentos da mão. Há entre os dois um diálogo permanente. Tudo o que a mão diz ao cérebro é, ao mesmo tempo, pergunta e resposta. E o cérebro também nunca responde definitivamente: em cada resposta que dá vai sempre também uma pergunta, para que a mão indague melhor». In Óscar Lopes, As Mãos e o Espírito, Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Oficina Musical, Porto, 1986.

Cortesia de OMusical/JDACT

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A descoberta da economia-mundo. Immanuel Wallerstein. «Desagregaram-se, para a historiografia, os gigantescos blocos espácio-temporais, com características imutáveis, a civilização egípcia, a civilização helénica, a civilização medieval, corroídos pelo sentido evolutivo. De igual modo estalaram “as molduras” dessas civilizações»

Cortesia de wikipedia

«(…) Magalhães Godinho formula a pergunta, o que é que significa descobrir? e dá-nos duas respostas bastante diferentes. Por um lado:
  • Descobrir, descoberta, portanto revelação das partes escondidas do mundo, a conjunção do Oriente e do Ocidente, a busca de novos caminhos e de novas paragens e gentes, culminando no encontro e na exploração metódica (achamento, descobrimento) de novos mundos, suscitando o espanto da novidade.
E, por outro lado:
  • Descobrir: construir o espaço operacional; por conseguinte, instrumentos físicos, a bússola, o astrolábio, a sonda, a corda de nós, o compasso, modos de agir sobre o real, mas também a ferramenta mental de trigonometria da toleta de marteloio, o sistema de referenciais e coordenadas, a preocupação da medida, a precisão descritiva. Construção do espaço ligada à construção do tempo, as estações das viagens, as horas das marés, a duração dos percursos de ida e de volta, os prazos dos pagamentos e das letras ou dos contratos; a transmissão de notícias vindas frequentemente de muito longe e por caminhos difíceis (da Índia a Portugal, com passagem por Ormuz e pelo Cairo, ou Damasco, e o Mediterrâneo).
Nestas duas definições, separadas por apenas quatro páginas, Magalhães Godinho aponta sucessivamente para as bases concretas da descoberta e para o seu impacto sócio-cultural sobre os dois lados desse encontro, um encontro, não o esqueçamos, que é imposto, frequentemente, contra a vontade dos que são assim descobertos, um encontro que trouxe tantos males como bens, um encontro que não foi nem absorvido nem apreciado plenamente até aos nossos dias. Proponho-me desenvolver três temas propostos por Magalhães Godinho na sua colecção de ensaios que intitulou Sobre teoria da história e historiografia: a história tornou-se geográfica; a história fala de uma actividade pluridimensional, mas única; o passado relativiza-se no presente.

A história é geográfica
A história torna-se hoje geográfica. Não se trata já desta velha história nem desta velha geografia. A história torna-se hoje geográfica porque transpõe para o passado o problema que a geografia humana encara no presente: as relações entre o meio fisico-biológico e as sociedades humanas. Desagregaram-se, para a historiografia, os gigantescos blocos espácio-temporais, com características imutáveis, a civilização egípcia, a civilização helénica, a civilização medieval, corroídos pelo sentido evolutivo. De igual modo estalaram as molduras dessas civilizações. Não há que transpor para o passado as realidades geográficas de hoje; há, sim, que estabelecer a própria história do meio físico-biológico e das relações com os diferentes povos. In Godinho, 1971
Estabelecer as relações entre as realidades físico-biológicas e a história humana, uma reivindicação basilar da tradição dos Annales, faz parte do ataque desta às simplificações da velha história, baseada em acontecimentos, puramente político-diplomática, e da velha geografia, que ignorava largamente o impacto fundamental da vida social humana sobre a Terra. No início do século XXI, num momento em que floresce a história ambientalista, uma tal afirmação parece banal. Mas mesmo hoje em dia a luta para que se leve a sério esta simbiose não está concluída. Há 30 ou 40 anos, raras eram as revistas, os historiadores que seguiam essa exigência.
Parece claro que a ecologia não é uma essência, mas uma existência, o resultado da interacção perpétua entre todos os elementos diversos que existem no universo e, mais particularmente, na nossa Terra. Tudo o que foi fundamental na história humana, a criação das ferramentas, as agriculturas, a mecanização, o controlo das energias, transforma a Terra, valoriza e/ou desestabiliza ou destrói formas de vida animais e vegetais, reestrutura a geografia e a geologia, utiliza e esgota recursos minerais. Nenhuma acção humana é neutra ou sem consequências. Mas recordemos a insistência de Magalhães Godinho na ruptura dos séculos XV e XVI, ruptura social para a humanidade. Que impacto teve esta ruptura sobre as relações entre o mundo físico-biológico e o mundo humano? Ela foi também uma ruptura ecológica? Vejamos. Essa ruptura transformou a estrutura ecológica da Terra de duas maneiras: a reorganização espacial da produção primária; a destruição maciça dos elementos produtivos da Terra. Nem uma nem outra foi inventada pelo mundo moderno. Mas a extensão e rapidez destas transformações e a irreversibilidade de uma parte delas, sem a mínima discussão colectiva sobre os seus benefícios e malefícios, deixa qualquer analista sério estupefacto». In Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde; Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69, 2004.

Cortesia de wikipedia/JDACT

A descoberta da economia-mundo. Immanuel Wallerstein. «Inventava-se o mundo porque, pela primeira vez na história, aquilo a que chamamos agora Europa era ligada de maneira substancial à Ásia e às Américas, de uma forma sistemática e contínua. E isto não podia deixar de reflectir-se na vida das pessoas»

Cortesia de wikipedia

«Os descobrimentos não foram somente a descoberta de territórios longínquos pelos Portugueses ou mesmo pelos Europeus; foram também a descoberta de uma nova construção social de que estas viagens, estas rotas oceânicas, estas trocas comerciais faziam parte, a construção da economia-mundo capitalista em que todos hoje vivemos. A descoberta dessa estrutura ficou a dever-se a um grupo de investigadores, a bem dizer, um grupo de hereges, que escreveram em meados do século XX. Entre estes textos transformadores, encontra-se a obra monumental de Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial (1963). Magalhães Godinho oferece-nos a conclusão de mais de mil páginas no seu parágrafo de abertura, que vale a pena ler com atenção:
  • Modernidade ou medievalidade dos séculos XV e XVI: qualificações demasiado globais, de flagrante imprecisão, para nos servirem de ferramenta na análise de expansão europeia que então se processa. Pense-se o que se pensar dessa controvérsia sempre em aberto, alguns factos são incontestáveis: ao desenrolar do fio dos anos a carta do globo é desenhada, o homem aprende a situar-se no espaço, a sua maneira de sentir e de entender as próprias relações humanas é impregnada pelo número, ao mesmo tempo pela consciência da mudança; a pouco e pouco cria-se um critério para distinguir o fantástico do real e o impossível do possível; transformam-se, em complexidade contraditória, motivações e ideais; a produção dos bens multiplica-se, o mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica, forma-se o Estado burocrático e centralizado de matiz mercantilista.
O mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução Económica, eis o tema que Magalhães Godinho põe em primeiro plano. A continuação do seu livro, contudo, não fala do mercado, mas conta-nos a evolução dos mapas-mundo europeus, uma viagem do fantástico ao real até que a medida do tempo e do espaço vá infiltrar-se cada vez mais em todos os aspectos da vida quotidiana. E Magalhães Godinho termina a sua introdução recordando-nos o que escrevia Tomé Pires no início do século XVI:
  • O qual trato de mercadoria é tam necessário que sem ele se non susteria o mundo; este é que nobrece os Regnos, que faz grande as gentes e nobelita as cidades, e o que faz a guerra e a paz do mundo. É hábito o da mercadoria limpo. Nom falo no meneo dela, havido em estima: que cousa pode ser melhor que a que tem por fundamento a verdade? (Suma Oriental)
Magalhães Godinho chama a isto a palavra decisiva. Mesmo assim, não se trata apenas da troca de bens. É todo um sistema que se constrói. Magalhães Godinho escreveu um verbete para o 2.º volume do Dicionário de História de Portugal sobre os complexos históricos-geográficos no qual insiste que a economia se insere num complexo de estruturas, um sistema (ele não recua perante esta palavra), e acrescenta: a noção de estrutura tanto opera quanto à sociedade global como quanto aos grupos, sectores de actividade, regiões e localidades que a integram, sendo sempre o meio de apreender analítico-sinteticamente (por explicação-compreensão) o facto social total. Ora aí está! A história total apresenta-se-nos como uma visão fundamental, uma exigência, um fardo. Teremos nós podido assumir essa tarefa? É tema para discussão. Começarei com uma expressão que Magalhães Godinho utiliza no seu livro recente, Le devisement du monde (2000), ao qual dá o subtítulo Da pluralidade dos espaços ao espaço global da humanidade, séculos XV-XVI. No título do primeiro capítulo, ele fala da invenção do mundo, no seio da qual estava a dar-se, aparentemente, a formação da Europa. O mundo não existia antes do século XV? A Europa não era já uma realidade muito antiga? Não, não era, porque falar assim seria reificar estes termos descritivos, que devem, isso sim, ser reservados às realidades nos espíritos das pessoas e à substância das suas vidas.
Inventava-se o mundo porque, pela primeira vez na história, aquilo a que chamamos agora Europa era ligada de maneira substancial à Ásia e às Américas, de uma forma sistemática e contínua. E isto não podia deixar de reflectir-se na vida das pessoas. Formava-se a Europa precisamente porque se inventava o mundo. A Europa deixava de ser um sinónimo, de resto pouco utilizado, para a Cristandade. Magalhães Godinho dá mesmo ao seu quinto capítulo o título Da Cristandade à Europa. A Europa vai tornar-se de modo mais imediato, através de um difícil divórcio da Cristandade, o centro de uma economia-mundo, cujos interesses relativamente à periferia vão ampliar-se ao ponto de determinarem o desenvolvimento não somente desta economia-mundo, mas daquilo que se transformou no seu centro. E para compreender tudo isto, é necessário fazer a história total deste novo sistema histórico que ganhava forma e que persiste até aos nossos dias». In Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde; Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69, 2004.

Cortesia de wikipedia/JDACT

A Busca de Sentido. Questões de Literatura Portuguesa. Óscar Lopes. «Aceitar a morte ‘é traição ao medo porque somos’ (“medo”, outra palavra-chave). Chegaremos às nebulosas mais distantes, porque a ‘morte é deste mundo em que o pecado, a queda a falta originária, o mal / é aceitar, seja o que for rendidos’»

jdact

Imagens do cosmos na poesia portuguesa. A Tabacaria, de Fernando Pessoa
«(…) Toda a acção decorre entre a janela e a cadeira, em que acaba por fumar o seu cigarro. Tudo é dominado pela metafísica, uma consequência de estar mal disposto. É, de facto, a teimosia de recusar todos os sonhos que surjam a um dado homem só, numa rua real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa; escrever versos de depreciação inclusivamente sobre o sentir-se génio como qualquer fala-só, serei sempre o que só tinha qualidades, numa ostensiva autonegação, defronte da Tabacaria, calcando aos pés a consciência de estar existindo. E chega aos versos centrais do poema: Ele [o dono da Tabacaria] morrerá, eu morrerei. / Ele deixará as tabuletas, e eu os versos também. / Depois de certa altura morrerá a rua onde está a tabuleta, / e a língua em que foram escritos os versos. / Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. / Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente / continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas [...] sempre uma coisa defronte da outra [...].

É curioso que Pessoa aceita a multiplicidade dos mundos como uma forma de exteriorizar o tédio de estar defronte, mesmo entre o fundo e a superfície. Sempre isto ou sempre outra coisa, ou nem uma coisa nem a outra. Todo o poema corresponde à mesma neurastenia, com a possível excepção de dois versos: Essência musical dos meus versos inúteis, / quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse. O mundo (qualquer mundo) enfastia-o, só porque não foi ele, poeta, quem o fez, pelo que se limita a expandir a todos os pretextos o seu mal-estar, não se sabe porquê.

A Morte, o espaço, a eternidade, de Jorge de Sena
A Morte, o Espaço, a Eternidade é o último poema das Metamorfoses, de Jorge de Sena (antes de Post-Metamorfoses e dos Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena, que se seguem no mesmo livro). Foi inspirada pela morte da mãe de José Blanc de Portugal, a quem se deve o luminoso pensamento inicial: De morte natural nunca ninguém morreu, e pelo primeiro satélite artificial da Teria, lançado em 4-11-1957 (Gagárine seria lançado em 4-5-1961). A ideia básica é a de que o ser humano não nasceu para morrer. É natural morrer-se, mas nós somos a anti-natureza (Antiphysis), sempre nos sonhamos imortais, e a própria dor por outrem que morreu é um erro humano a assinalar algo de nós que se perdeu em outrem, é a salvaguarda social da morte individual, como há milhões de anos sabemos. Nascemos para emergir, verbo importante (tal como, na escala animal, a fase dos anfíbios, os que emergiram de um para outro meio). Que prova a morte?
Só prova que se morre de universo pouco. Aceitar a morte é traição ao medo porque somos (medo, outra palavra-chave). Chegaremos às nebulosas mais distantes, porque a morte é deste mundo em que o pecado, a queda a falta originária, o mal / é aceitar, seja o que for rendidos. E aqui há a transição que aproxima o poema de uma ideia que o jacobino, Sampaio (Bruno) trouxe da tradição esotérica. Deus, não pode fazer nada. De nós se acresce ele mesmo, que será / o que espírito formos. Portanto, não nos aguarda, não; e a ressurreição / é a morte desse Deus que nos espera / para espírito ser e a carne do Universo. Para emergir nascemos. E o poema remata por um consciente paradoxo: E, quando o infinito não mais fosse e o encontro houvesse de um limite dele, / a Vida com seus punhos levá-la-á na frente, / para que em Espaço caiba a Eternidade.
Este poema em cuja motivação se cruzam o Sputnik, a primeira proeza extraterrestre desde as viagens que principiaram a unificar intencionalmente a ecúmena, e a morte de uma pessoa amiga, é bem um poema de Jorge de Sena, deca e dodecassilábico branco, escrito currente calamo à medida dos grandes impulsos, embora desde o começo com a negação da natureza: Somos / esse negar da espécie, esse negar / que nos liga ainda ao Sol, à Terra e às águas. As repetições do emergir, e da dor, ou pavor) comunicados pela morte. A morte que não é estritamente animal, ou simplesmente biológica, é da Vida Humana que passa por todo o orgânico e é o gozo e é dor e pele que palpita / ligeiramente fria sob ardentes dedos. É o pouco de universo a que se agarram, / para morrer, os que possuem tudo. Um poema de amor e de progresso, sem limites espaciais. Protesto da Vida, enquanto o medo existir. É ainda possível desvendar contradições, enovelamentos, antinomias. São nossas. Não são de Camões, nem de Soares de Passos, nem da peculiar e complicada neurastenia de Pessoa. São nossas». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Jornal de Letras, 17-8-1994.

Cortesia de Caminho/JDACT

Questões de Literatura Portuguesa. A Busca de Sentido. Óscar Lopes. «… não passam de ‘faíscas do seu carro ardente / através da infinidade’; o Sol acabará por arrefecer, como testemunham as manchas que toldam o seu semblante; e tudo perecerá, ‘chocando-se em destroços fumegantes, / desabarão no caos do universo’»

Der wander über dem nebelmeer, 1815
jdact

Imagens do cosmos na poesia portuguesa. Gama e a máquina do Mundo
«A primeira imagem do Mundo vem quase no desfecho de Os Lusíadas, Canto X, est. 76-90. É Tétis, esposa do Oceano, que, a pretexto de indicar os lugares das futuras glórias lusas por todo o périplo do Indico, do Pacífico e da América do Sul, começa por mostrar a Vasco da Gama um transunto em pequeno volume das esferas ptolomeicas. O próprio Gama verá, como em tamanho natural debuxado (e há nisso qualquer milagre natural, ou pelo menos óptico), as imagens dos heróis nos seus ambientes, incluindo o próprio naufrágio de Camões na foz do Mecão, agarrado ao próprio poema. O que me parece mais surpreendente nisto é o ponto de vista. Repare-se que a grande máquina do Mundo é avistada, como que intemporalmente, a partir do Empíreo. É aqui quer dizer, é do lugar de Quem cerca em derredor este rotundo / Globo e sua superfície tão limada / É Deus, que a própria Tétis se denega como divindade (Só para fazer versos deleitosos / Servimos), e aponta as realidades porvindouras ao grande capitão. Claro que o que é Deus, ninguém o entende, mas não há dúvida de que está em toda a parte, e em especial no último Céu, como se deduz da declaração acima; e isso tem como efeito a espacialização do Céu, isto é, dos últimos confins, do finito/infinito, conforme um crente simples ainda hoje acredita, como é bem sabido. De resto, como falar do Mundo, sem o fazer em nome de Deus? Por isso, o paradoxo de se supor Vasco da Gama a olhar um transunto representativo da grande máquina do Mundo deve, à- nossa luz actual, revestir-se de um significado epistemológico, sem qualquer pedantice.
Com efeito, a relatividade generalizada, a própria evidência comezinha de uma fita de Moebius, as geometrias fractais fazem-nos hoje desconfiar de que o infinito de três dimensões inteiras (ou de n dimensões inteiras) talvez não seja o mais adequado à física, e o próprio Camões poderia aperceber-se de que a geometria não passa de um subconjunto questionável, de um conjunto de propriedades físicas; por isso o mundo não é objecto fixo de fala; o mundo tem, como uma das suas qualidades inerentes, a ciência (as ciências humanas), em devir com todas as suas contradições e antinomias.

O Firmamento, de Soares de Passos
Em 1852 Soares de Passos publica na revista O Bardo (1352-1854) a poesia O Firmamento sugerida, segundo testemunho de Rodrigues Cordeiro, por uma discussão com Eduardo Luso Falcão, que lhe emprestou o Discours du Monde de P. S. Laplace (obra então célebre, cinco edições de 1796 a 1824), onde se expõe a génese do Universo a partir daquilo que se entendia como nebulosa. Disso resulta a elaboração, certamente lenta, de O Firmamento, aliás ainda aparentado com outros poemas que escreveu, como as O Anjo da Humanidade. O seu interesse reside numa ligação entre o progressismo humanitarista e a imagem ainda romântica das grandes catástrofes históricas, tais como via Herculano. A imagem que domina por inteiro o poema é a do livro imenso das estrelas, onde se lê (como em Kant) o louvor de Deus. Soares de Passos mal sai da lição bíblica: o Mundo é produzido pela palavra divina, mas as estrelas, fisicamente muito mais perto de Deus, não passam de faíscas do seu carro ardente / através da infinidade; o Sol acabará por arrefecer, como testemunham as manchas que toldam o seu semblante; e tudo perecerá, chocando-se em destroços fumegantes, / desabarão no caos do universo. O que, talvez por lapso, pois ainda o encontraremos em Antero de Quental, denuncia uma concepção absoluta do alto, e do baixo, que certos gregos já não tinham.
Em toda a sua obra, oscilante entre o protesto contra as opressões e limitações (mesmo as da saúde, morreu aos trinta e quatro anos, numa vida muito encolhida, e não reconheceu concretamente o mundo em que vivia, apesar da posição huguesca de simpatia pelos pobres e pelos humildes), Soares de Passos nunca assumirá o jeito de independência intelectual, tal como hoje o entendemos (os que se atrevem a entender).

A Tabacaria, de Fernando Pessoa
Com Tabacaria (15-08-1928) passaremos a outro estado de espírito. O tema está exposto em três versos: Estou hoje dividido entre a lealdade que-devo / à Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora / e à sensação que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Trata-se de uma incompatibilidade de fundo entre o real e o ideal. Ou, noutros termos simples: Não sou nada / […] Tenho em mim os sonhos todos do mundo. Os dois pontos de referência são a janela e a cadeira. A janela donde se vê todo o seu lado da rua, como fileira de um comboio; verosimilmente, a pequena a comer chocolates (olha que as religiões todas não ensinam senão chocolates); depois o dono da Tabacaria, e outro homem (para comprar tabaco?), o Esteves sem metafísica, a quem grita Adeus, ó Esteves! E o universo / reconstituiu-se sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Jornal de Letras, 17-8-1994.

Cortesia de Caminho/JDACT

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O Segredo Mortal dos Templários. Robert Ambelain. «As mulheres, mais valorosas e mais ardentes, não esperam já a sua última hora para colocar a famosa túnica negra das “perfeitas”. E as nobres famílias vassalas dos condes de Foix e dos viscondes de Béziers, contam todas com ‘hereges revestidos’ entre seus membros»

Cortesia de wikipedia

«(…) Tratava-se de fazer do mundo inteiro uma terra Santa. Mas, para isso, primeiro teriam que se apoderar do mundo. Mas como, a uma minoria valente, organizada e rica, muito vagamente consciente da grandiosa finalidade de suas façanhas, porém, sabiamente dirigida por um grupo de iniciados, e que soubesse guardar o segredo e obedecer cegamente, era-lhe perfeitamente possível. Todavia, chegou o dia em que a coisa saiu à luz e em que os fugitivos, orgulhosos decepcionados ou amargurados, falaram. O rei da França farejou o ganho, e soube fazer cúmplice ao papa, quem já era seu devedor do acordo nocturno do bosque de Saint-Jean-d'Angély. O tesouro real e o dogma romano tinham o xeque-mate em suas mãos. Então, os servos da justiça engraxaram a madeira dos potros, e os verdugos puseram ao vermelho candente suas tenazes ardentes. E quando se apoderaram de todo o dinheiro do Templo e confiscaram os feudos e as encomendas, acenderam-se as piras.
Sua fumaça negra, gordurosa e fedorenta, que entrevava alvoradas e crepúsculos, desterrou, durante seiscentos anos, a esperança de uma unidade europeia e de uma religião universal que unisse a todos os homens. Mas essa fumaça, acima de tudo, ia afogar a verdade sobre a maior impostura da História. Por isso, para afastar sua sombra maléfica, é que foram escritas estas páginas, embora depois de muitas outras, já que, muito antes dos Templários, os cátaros tinham conhecido e propagado esta verdade. E foi calar suas vozes pelo que fizeram aniquilar a civilização occitana, como vamos demonstrar a seguir. Roncelin de Fos, o mestre Roncelin dos interrogatórios, possuía como senhorio um pequeno porto que levava seu nome (Fos-sur-Mer), situado ainda em nossos dias na entrada ocidental do lago de Berre. Era então vassalo dos reis da Mallorca, os quais dependiam dos reis de Aragão, defensores da heresia cátara na batalha do Muret, no ano 1213. Béziers, a cidade mártir da Cruzada, está muito perto, e a matança efectuada sobre toda a sua população (100.000 pessoas) pelos cruzados de Simão de Montfort, em 22 de Julho de 1209, católicos e cátaros incluídos. Em seu coração aninhou o ódio contra a Igreja católica, que era então sinónimo de cristianismo, de modo que para ele ambos estavam englobados dentro de uma aversão comum. Os atestados dos interrogatórios que os inquisidores nos legaram são bastante moderados em relação às apreciações atribuídas aos hereges sobre o Jesus de Nazaré. Podemos julgá-lo nós mesmos; a seguir veremos o que terá que deduzir de tudo isso. O Manual do Inquisidor do dominicano Bernard Gui (1261-1331), intitulado Practica, proporciona a este respeito preciosos detalhes: A Cruz de Cristo não deve ser nem adorada nem venerada, já que ninguém adora ou venera o patíbulo no qual seu pai, um familiar ou um amigo foi enforcado. (dicunt quod crux Christi non est adorando nec veneranda, quia, ut dicunt, nullus adorat aut veneratur paábulum in quo pater aut aliquis propinquus vel amicus fuisset suspensus...) item, negam a encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo no seio da Maria sempre virgem e sustentam que não adoptou um verdadeiro corpo humano, nenhuma verdadeira carne humana como a têm os outros homens em virtude da natureza humana, que não sofreu nem morreu na cruz, que não ressuscitou dentre os mortos, que não subiu ao céu com um corpo e uma carne humanos, mas sim tudo isso aconteceu de modo figurado!... (ítem, incarnationem Domini Ihesu Christi ex María semper virgine, asserentes ipsum non habuisse verum corpus humanum nec veram carnem hominis sicut habent ceteri homines ex natura humana nec veré fuisse passum ac mortuum in cruce nec veré resurrexisse a mortuis nec veré ascendisse in celum cum corpore et carne humana, sed omnia in similitudine facía fuisse!...
É fácil compreender semelhante prudência na transcrição das respostas: o facto de manter e relatar a verdadeira opinião dos perfeitos sobre Jesus de Nazaré teria significado destruir o trabalho depurativo dos padres da igreja e a dos monges copistas. Isso explica que tenham chegado às nossas mãos tão poucos atestados completos do interrogatório dos perfeitos. Em relação aos simples crentes, que ignoravam a doutrina total, esses tinham menor importância. Mas a verdade é muito distinta. Na época em que se desenvolve o início da Cruzada os nobres tolosanos, os vassalos dos condes de Foix e dos Trencavel, os viscondes de Béziers, se não receberam já o consolamentum dos perfeitos cátaros, todos eles são, em sua maioria, crentes. Terá que incluir já entre eles aos templários de certas regiões, tendo em conta a sua estranha atitude no curso da Cruzada? Este ponto ainda não está bem elucidado. Seja como for, os vassalos dos condes de Foix e dos viscondes de Béziers albergam, todos, aos perfeitos, amparam suas reuniões, e às vezes recebem o consolamentum em seu leito de morte. As mulheres, mais valorosas e mais ardentes, não esperam já a sua última hora para colocar a famosa túnica negra das perfeitas. Os textos dos interrogatórios da Inquisição (maldita) são explícitos a este respeito. E as nobres famílias vassalas dos condes de Foix e dos viscondes de Béziers, os Fanjeaux, os Laurac, os Mirepoix, os Durban, os Saissac, os Cháteauverdun, os de L'Isle-Jourdain, os Castelbon, os Niort, os Durfort, os Montréal, os Mazerolles, os des Termes, de Minerve, de Pierrepertuse, etc., para não citar senão as famílias principais, contam todas com hereges revestidos entre seus membros, e todos os outros são crentes ou simpatizantes». In Robert Ambelain, Jesus ou le mortel secret des Templiers, 1970, Éditions Robert Laffont, Paris, O Segredo Mortal dos Templários, Ediciones Martinez Roca, 1982, Barcelona, ISBN 84-270-0727-2.

Cortesia de Roca/JDACT