sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Uma História da Leitura. Alberto Manguel. «Lembro-me de uma vez ter lido num livro qualquer que um homem chamado O. F., (será…) montando uma espécie de monstro alado, sobrevoava todos os países que queria e matava sem ajuda um elevado número de homens e gigantes»

jdact e cortesia de wikipedia

A Última Página
«(…) Penso que lia pelo menos de duas formas. Uma consistia em seguir, com a respiração suspensa, os acontecimentos e as personagens, sem pausas para reparar nos pormenores, com o ritmo acelerado da leitura muitas vezes a precipitar a história para além da última página quando li Rider Haggard, a Odisseia, Conan Doyle e o autor alemão de histórias do FarWest, Karl May. A outra consistia numa exploração cuidada, perscrutando o texto para compreender o seu sentido enredado, achando prazer nos meros sons das palavras ou nas pistas que as palavras não queriam revelar, ou no que eu suspeitava estar escondido no fundo da própria história, algo demasiado terrível ou maravilhoso para se poder olhar de frente. Este segundo tipo de leitura, que tinha algo a ver com a forma de ler romances policiais, descobri-o em Lewis Carroll, em Dante, em Kipling, em Borges. Também lia segundo o que julgava que o livro pretendia ser (classificado pelo autor, pelo editor, por outro leitor). Aos doze anos, li A Caça, de Chekhov, numa série policial e, tomando Chekhov por um escritor de policiais russo, li em seguida Senhora com Cãozinho, como se tivesse sido escrito por um rival de Conan Doyle, e gostei, embora achasse o enredo pouco elaborado. Samuel Butler conta uma história semelhante a respeito de um certo William Sefton Moorhouse, que julgou que estava a ser convertido ao cristianismo ao ler Anatomy of Melancholy, de Burton, que adquirira por engano, pensando tratar-se de Analogy, de Butler, livro que lhe fora recomendado por um amigo seu. Mas ficou bastante perplexo. Numa história publicada nos anos 40, Borges sugere que a leitura de A Imitação de Cristo, de Thomas à Kempis, como se tivesse sido escrito por James Joyce, seria uma renovação suficiente para aqueles ténues exercícios espirituais.
No seu Tractatus Theologico-Politicus de 1650 (denunciado pela Igreja Católica Romana como um livro forjado no inferno por um judeu renegado e pelo demónio), Espinosa tinha já observado: Acontece com frequência lermos em livros diferentes histórias em si mesmas semelhantes, mas que julgamos de forma muito diversa, de acordo com as opiniões que formámos dos autores. Lembro-me de uma vez ter lido num livro qualquer que um homem chamado Orlando Furioso, montando uma espécie de monstro alado, sobrevoava todos os países que queria e matava sem ajuda um elevado número de homens e gigantes, e outras fantasias como estas, que, do ponto de vista da razão, são obviamente absurdas. Li uma história muito semelhante em Ovídio, sobre Perseu, e também, na Bíblia, nos livros dos Juízes e Reis, sobre Sansão, que, sozinho e desarmado, matou milhares de homens, e sobre Elias, que voou pelos ares e, por fim, subiu ao céu num carro de fogo puxado por cavalos indómitos. Todas estas histórias são obviamente semelhantes, mas julgamo-las de formas muito diferentes. A primeira procurava apenas divertir, a segunda tinha um objectivo político, a terceira um objectivo religioso. Também eu, por muito tempo, continuei a atribuir objectivos aos livros que lia, imaginando, por exemplo, que Pilgrim's Progress, de Bunyan, me faria sermões, porque me tinham dito que se tratava de uma alegoria religiosa, como se eu tivesse a capacidade de escutar o que se passava na cabeça do autor no momento da criação e de obter provas de que ele estava mesmo a falar verdade. A experiência e algum senso comum ainda não me curaram completamente deste vício supersticioso.
Por vezes, os próprios livros eram talismãs: uma certa edição em dois volumes de Tristram Shandy, uma edição da Penguin de The Beast Must Die, de Nicholas Blake, um exemplar em mau estado de Annotated Alice, de Martin Gardner, que mandei encadernar (e me custou uma mesada inteira) numa livraria escusa. Lia estes livros com um cuidado especial e guardava-os para momentos especiais. Thomas à Kempis aconselhava os seus alunos a pegar num livro nas vossas mãos tal como Simeão, o Justo, pegou ao colo no Menino Jesus para o levar e o beijar. E quando tiverdes acabado de ler, fechai o livro e dai graças por cada uma das palavras saídas da boca de Deus; porque no campo do Senhor encontrastes um tesouro escondido. E São Bento, escrevendo numa altura em que os livros eram relativamente raros e dispendiosos, ordenou aos seus monges que segurassem se possível os livros que liam na mão esquerda, envolta na manga da túnica, e de joelhos; a mão direita deve estar descoberta para segurar as páginas e as voltar. As minhas leituras de adolescente não envolviam tal veneração profunda nem rituais tão meticulosos, mas estavam imbuídas de uma certa solenidade e importância secretas que não negarei agora». In Alberto Manguel, Uma História da Leitura, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-2339-3.

Cortesia Presença/JDACT