quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Pintura. Painel de São Vicente de Fora. Nuno Gonçalves. Painel da Relíquia. 1470 e 1480. «O equipamento militar que as figuras em destaque avançado desse painel dos iguais envergam, muito similar, por exemplo, ao equipamento estilizado dos numerosos soldados presentes nas “tapeçarias de Pastrana”…»

Cortesia de wikipedia

Espelho. Reflexão. A Lógica do Espelho Central
«(…) O problema principal das duas cenas centrais reside pois na correcta identificação da natureza das figuras equipadas militarmente, presentes no que já antes chamámos um painel de igualdade, em contraste com o outro painel central de ambiência familiar de onde os equipamentos militares estão ausentes.

NOTA: Quando, para designar o painel «do Arcebispo», se escolhe uma das figuras do plano mais recuado, integrada no background genericamente composto por elementos do clero, não se faz mais que sublinhar a ausência de individualização das cinco figuras principais que rodeiam a figura central. Parece ter havido uma intenção de «igualizar» os cinco de forma subtil, como resulta de uma comparação com o painel dos Cavaleiros, onde cada figura possui uma personalidade própria e assertiva, veste de modo distinto das restantes, e ostenta armas individualizadas providas de ricos ornamentos. Em contraste, os cinco do painel do Arcebispo, e em especial os dois dianteiros, apresentam fisionomias e expressões pouco assertivas, vestem de forma semelhante, a ponto de se poder dizer dos mesmos dois mais avançados que estão uniformizados dos pés à cabeça, e as suas armas são idênticas e de aspecto singelo, compare-se a espada desprovida de ornamentos do primeiro plano deste painel com as do painel dos Cavaleiros, ou as cotas de malha simples e idênticas envergadas pelas cinco figuras, quatro delas por baixo de couraças ou brigandinas iguais duas a duas, com a rica e ornamentada cota de malha da figura de vermelho no painel dos Cavaleiros.



O equipamento militar que as figuras em destaque avançado desse painel dos iguais envergam, muito similar, por exemplo, ao equipamento estilizado dos numerosos soldados presentes nas tapeçarias de Pastrana, até ao pormenor das orlas inferiores douradas das cotas de malha, parece, por seu lado, corresponder ao que seria de esperar em representações iconográficas de soldados uniformizados da segunda metade do século XV. O seu uniforme, isto é, as suas cores senhoriais, a libré (real ou convencionada pelo pintor) que indica a sua pertença a uma determinada casa ou facção, parece muito mais convincente sob essa perspectiva do que a extraordinária ideia de um rei com a sua indumentária copiada a papel químico e reproduzida a seu lado através de uma outra figura ostentando uma impressionante expressão de ausência de inteligência. Adiante veremos que o uso das cores, nos soldados como nas restantes figuras, é ainda muito mais subtil do que isso, transportando todo um mundo de intenções significativas.
Considere-se, por exemplo, a brigandina composta de pedaços de metal sobrepostos, unidos por rebites e cobertos por um forro e pelo tecido que fica visível do lado de fora, onde os rebites preenchem igualmente funções decorativas. É precisamente essa a peça de equipamento militar genérico mais usual nas numerosas iluminuras representando recontros militares em crónicas francesas ou inglesas da época. Não é importante indicar aqui uma longa série de referências tendente a documentar a maior ou menor utilização genérica nos exércitos europeus de peças de armadura mais reduzidas que em épocas anteriores, e de brigandinas flexíveis na linha da lorica segmentata da antiguidade romana, porque nos interessa sobretudo chamar a atenção para o que seria de esperar numa representação iconográfica convencional de um rei ou personagem de calibre real equipado militarmente.
Mesmo num período em que o equipamento mais ligeiro substitui a armadura tradicional, um rei ou nobre importante aparelhado para a guerra é sempre representado, ou de armadura completa e cerimonial com ornamentos sugestivos de magnificência e poder, muitas vezes alusivos à sua própria identidade através dos seus emblemas pessoais, ou eventualmente em traje mais prático, mas igualmente ornamentado de forma que não permite a confusão com a indumentária de um simples soldado. Compare-se, a título de exemplo, a representação de Afonso V empunhando o seu bastão dourado de comando, nas tapeçarias de Pastrana, com a representação de soldados borgonheses, numa gravura de Bruges ( c. 1465 - 85): note-se a simplicidade da indumentária militar dos soldados, a sua semelhança com a das duas figuras avançadas do painel por alguma razão dito do Arcebispo, e o seu contraste com o inconfundível equipamento militar de um rei, sempre aparatoso, singular e sem duplicados. Se o rei fosse representado de brigandina, ela deveria ostentar elementos luxuosos como tecidos de brocados ou elaboradas peças decorativas de ouro ou prata, observe-se mais uma vez a simplicidade do seu revestimento verde-escuro incrustado de vulgaríssimos rebites, e se empunhasse uma lança, seria muito provavelmente uma lança pessoal coberta, como as suas restantes armas, de ornamentos e emblemas, e não um simples chuço de combate igual aos das restantes figuras do painel que empunham armas desse tipo, muito mais sugestivas de soldados que se dissolvem numa formação de combate que de individualidades importantes e reconhecíveis.
As tapeçarias de Pastrana, cujos cartões são com frequência atribuídos ao mesmo pintor, são um exemplo instrutivo: praticamente todos os soldados envergam brigandinas idênticas às dos painéis, e o seu contraste com a figura inequívoca do rei, com armadura coberta de tecido com ricos brocados e ornamentos de ouro, é completo. A conclusão razoável é a de que nos dois painéis centrais figuram de um lado a realeza, representada por dois casais e uma criança, e do outro simples soldados com vestuário e equipamento militar a condizer com a sua condição». In António Salvador Marques, Painéis de São Vicente de Fora.

Cortesia de Painéis/JDACT