quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado. Fialho de Almeida. «V. M. tem tudo a ganhar em ser assassinado. Mexa os pauzinhos p’ra isso, despache-se! Digne-se verter o seu sangue, antes que a História…»

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O seu enterro
«(…) Veja o imperador Pedro, seu tio, que o Dia pintou tomando de assalto a fortaleza de Uruguayana, de chapéu desabado, e cuja fria coragem o mesmo jornal assinala, contando que ao cair ao mar, perto do cais, a primeira coisa que fez foi descalçar as botas, que homem!, e a segunda recusar o capilé morno que lhe ofereciam à guisa de calmante. Tais rasgos habilitariam por si sós, epicamente, o tio Pedro a um bronze heróico da Tijuca, quanto mais o saber-se com que temeridade carlovíngia ele levou a cabo o seu papel de náufrago, afastando o escaldão de pés prescrito pelos médicos, e aparecendo de peúgas à corte, que ao som do coro de aventureiros do Guarany, se propunha vasar-lhe copinhos de cognac.
O monarca brasileiro lhe vem delineado pois, meu senhor e meu rei, o curso de herói que V. M. terá de frequentar antes de constituir a sua preciosa pele em alvo à pontaria dos algozes. É abrir matrícula nas aulas de martírio! Imitar o outro, ir por exemplo de coroa desabada conquistar o forte de Caxias, façanha cómoda, ali tão perto do paço, e com char-à-bancs três vezes ao dia. Cair ao mar, como o imperador Pedro, inda que, tirando as babuchas, o povo lhe lobrigue por baixo peúgas de cautchuc. Oh meu senhor! Fosse eu rei, e diabos me levem se não tinha já nomeado regicida da minha real câmara (sem perda de direitos para May Figueira) o facínora mais catita da penitenciária. A realeza carece de sagrar-se no espírito da turba, pela espécie de auréola que põe num homem a realização de um acto extraordinário. Por consequência faça V. M. com que o escadeirem. Não abrenuncie, por Deus, esta proposta, gritando que se renta para os fideputas que lha alvitram. A Razão de Estado antes de tudo. É o barbadão de Veiros que lhe acena. João VI que do túmulo lhe diz: deixa-te chumbar, Luluzinho.
Porque enfim V. M. não tem agora tão grandes coisas no seu reinado que possa prescindir assim de um regicídio. A nota do ódio é tão necessária ao prestígio da sua coroa, como a nota de vinte mil réis. Mesmo, nesta dinastia de frustes que vai de João IV a João VI, não aparece um único rei com a bonomia parrana de V. M., João IV era um poltrão, mas enfim lá tinha a mulher. João V, um femeeiro, mas propulsou as artes de luxo a um esplendor requintado e extraordinário. A Afonso VI faltava aquilo que Brown-Séquard anda a restaurar nas regiões infra-umbilicais dos homens velhos; entanto ele conseguiu gastar a enclausura de Sintra, primeiro que a prisão o gastasse a ele.
E convenho mesmo que o monarca José I fosse um maricas, que andava sempre a tasquinhar barrigas de freira: mas, meu senhor, lá o temos em bronze no Terreiro do Paço, porque teve a habilidade de arranjar um terramoto autêntico, um ministro enérgico, e uma tentativa de regicídio menos mal engerocada. Neste carnaval de Braganças, é pois V. M. o único que intenta penetrar os umbrais da História sem bagagem, apenas com a sua traduçãozinha do Hamlet, a greve dos chapeleiros, e José Luciano preso por uma corrente ao realejo constitucional onde há vinte e seis anos V. M. mói a sua própria marcha fúnebre. Ah, que pobreza de feitos históricos! Que supressão de vícios e manias! Que ausência de vultos glorificadores da sua governação!... V. M. não tem ao seu lado Luísas de Gusmão; o luxo da sua corte infere-se pelas equipagens do ex-conde de Mesquitela e pelas toilettes do Teixeira Lacrau; V. M. está como Afonso VI, e ainda não deliu, que eu saiba, prisão nenhuma; e tendo por barrigas de freira a glotoneria de José I, não teve ainda, como ele, as compensações do terramoto, do ministro, ou da tentativa do regicídio.
Como há-de o reinado de V. M. fazer fumo, se ninguém contra inda fez fogo? E a decadência!..., antigamente só emigravam do país caixeiros de tenda, cavadores do campo, e uma ou outra actrizita da Trindade. Agora, até os regicidas… uns desgraçados que a casa real deixa inactivos (pouca vergonha!) e que p’ra ganharem a vida, têm d’ir trabalhar para o Brasil. Recapitulo: V. M. tem tudo a ganhar em ser assassinado. Mexa os pauzinhos p’ra isso, despache-se! Digne-se verter o seu sangue, antes que a História, julgando-o, solicite a posteridade a verter águas». In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado, Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8. 
Cortesia de Assírio Alvim/JDACT