terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina. José Augusto França. «… a edificar uma bolsa, que anteriormente se reunia sob as arcadas da Rua Nova dos Ferros e que seria custeada pelo próprio donativo dos 4% feito à coroa. Daí veio o novo topónimo do local: Praça do Comércio, que passou de designação do edifício ao sítio…»


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A Legislação da Reconstrução
«(…) As instruções do decreto de 12 de Junho de 1758 classificam as ruas principais e atribuem-lhes a largura máxima de sessenta palmos, com dez de cada lado para os passeios, e cloacas, cuja construção e conservação adviriam aos proprietários fronteiros. Passeios também nas ruas secundárias, de quarenta palmos, cuja utilidade para a liberdade do ar e da luz era sublinhada, numa consciência urbanística e sanitária nova. A altura das casas era ali regulamentada, aferindo-a pela dos edifícios do Terreiro do Paço e já não com dois andares mas com o número deles que coubessem em tal pé direito; o desenho das fachadas, ainda não fixado, determinava, porém, sacadas nos primeiros andares e janelas de peito nos outros, nas ruas principais, e só janelas de peito nas outras vias, prevendo portais especialmente tratados em ruas como as de S. Francisco e de S. Roque, de modo a distinguirem casas nobres. As ruas principais seriam aquelas que corriam no sentido S.-N., ligando as duas praças, e que receberiam os nomes de Augusta, a do meio, Áurea, a sua paralela a poente, e (mais tarde) Bela da Rainha, a nascente (hoje da Prata), embora só as duas primeiras fossem mencionadas como ruas nobres; mas também seria considerada principal uma outra rua correndo transversalmente e que receberia o nome de Nova d'El-Rei. Era, de certo modo, a antiga e tradicional Rua Nova dos Ferros, disciplinada na nova malha mas ressuscitada, e sempre paralela, afinal, à face norte do Terreiro do Paço, no ponto onde uma rua importante continuava a ser necessária à imagem urbana.
O programa de Manuel Maia, figurado por Eugénio Santos no seu projecto tomava definitivamente forma. A cidade, ordenada e rígida, ia nascer. Quero que prefira como deve preferir ao interesse particular (…) a utilidade pública da regularidade e formosura da capital destes reinos em todas as ruas», afirmava José I (ou Pombal) no decreto de 12 de Junho. Cada casa da Baixa entrava na sua fileira para preservar o interesse geral. Privilégios antigos desapareciam; e, entre eles, mencionava-se os das leis zenonianas, de carácter consuetudinário, que asseguravam desafogo de vistas. Era evidente que o direito de propriedade assim tradicionalmente considerado não convinha à ordenação pombalina, e a Baixa dava exemplo ao resto da cidade, como bairro-piloto. Marcada a sua cércea pela do Terreiro do Paço, a Baixa dependia também dele, em certa medida, e já vimos como a reestruturação da praça orientou a sua própria definição.

A Praça do Comércio
O Terreiro do Paço foi objecto dos cuidados de Manuel Maia logo na primeira parte da sua dissertação, ao prever as boas entradas que para a cidade renovada se poderiam fazer naquela praça; e a terceira parte do memorial era acompanhada por um alçado-tipo a ela destinada, desenhado por Eugénio Santos e hoje perdido, que representava uma forma de edifício mais nobre (…) com seus pórticos com mezzaninos contra as inclemências do tempo, dois pavimentos de janelas rasgadas, dos quais um se poderia abater parecendo grande a altura, e outro pavimento de mezzaninos junto dos telhados. A monumentalidade da praça estava assim assegurada, e relacionada com o seu aspecto anterior, com a Galeria das Damas, em arcadas do lado poente, e com o próprio torreão de Tércio, padrão dos torreões que Eugénio Santos desenhou como termo das duas alas que agora avançavam para o rio. A duplicação deste pavilhão, já célebre na imagem lisboeta anterior ao terramoto, fora encarada, provavelmente, depois de 1750, quando se pensara transformar todo o Terreiro do Paço, conforme projecto anónimo, mas de que Maia tinha com certeza conhecimento. Um arco de triunfo, a meio da face norte, e, uma estátua equestre levantada ao centro desta praça, e também pensados cerca de 1759, com desenhos de Eugénio Santos, contribuíam para a nobilitação do conjunto, que seria levantado numa planta geral de 177 metros (sentido S.-N.) por 192,5 metros (sentido E.-O.).
Nele seriam os comerciantes da capital autorizados, por decreto de 16 de Janeiro de 1758, a edificar uma bolsa, ou praça, que anteriormente se reunia sob as arcadas da Rua Nova dos Ferros e que seria custeada pelo próprio donativo dos quatro por cento feito à coroa. Daí veio, certamente, o novo topónimo do local: Praça do Comércio, que passou de designação do edifício ao sítio onde este se ergueu. O que, depois de ter sido Terreiro do paço real desaparecido, se desenhava como uma praça real, na tradição europeia, a que o monumento do rei completaria a razão de assim ser chamada, tornava-se numa praça cujo nome homenageava uma função e uma classe de importância fundamental na sociedade pombalina. O deslizar semântico ajustava-se ao desígnio ideológico e político. O novo nome aparece já em 1759, num aviso de Pombal, e nos desenhos que vimos e, embora, mais tarde, surja a designação Real Praça do Comércio (sobretudo na altura da inauguração da estátua equestre), o adjectivo áulico não teve curso oficial». In José Augusto França, A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina, Director da Publicação António Quadros, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Oficinas Gráficas da Minerva do Comércio, Instituto Camões, 1986.

Cortesia de ICamões/JDACT