quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «… quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar»

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«(…) Não é assim, de enfiada, que estão escritos, cada linha leva seu verso obediente, mas desta maneira, contínuos, eles e nós, sem outra pausa que a da respiração e do canto, é que os lemos, a ã folha mais recente de todas tem a data de treze de Novembro de mil novecentos e trinta e cinco, passou mês e meio sobre tê-la escrito, ainda folha de pouco tempo, e diz. Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser. Juntou os papéis, vinte anos dia sobre dia, folha após folha, guardou-os numa gaveta da pequena secretária, fechou as janelas, e pôs a correr a água quente para se lavar. Passava um pouco das sete horas.
Pontual, quando ainda ecoava a última pancada das oito no relógio de caixa alta que ornamentava o patamar da recepção, Ricardo Reis desceu à sala de jantar. O gerente Salvador sorriu, levantando o bigode sobre os dentes pouco limpos, e correu a abrir-lhe a porta dupla de painéis de vidro, monogramados com um H e um B entrelaçados de curvas e contracurvas, de apêndices e alongamentos vegetalistas, de reminiscências de acantos, palmetas, folhagens enroladas, assim dignificando as artes aplicadas o trivial ofício hoteleiro. O maître saiu-lhe ao caminho, não estavam outros hóspedes na sala, só dois criados que acabavam de pôr as mesas, ouviam-se rumores de copa atrás doutra porta monogramada, por ali entrariam daí a pouco as terrinas, os pratos cobertos, às travessas. O mobiliário é o que costuma ser, quem viu uma destas salas de jantar viu todas, excepto quando o hotel for de luxo, e não é este o caso, umas frouxas luzes no tecto e nas paredes, uns cabides, toalhas brancas nas mesas, alvíssimas, é o brio da gerência, curadas de lixívia na lavandaria, senão na lavadeira de Caneças, que não usa mais que sabão e sol, com tanta chuva, há tantos dias, há-de ter o rol atrasado. Sentou-se Ricardo Reis, o maître diz-lhe o que há para comer, a sopa, o peixe, a carne, salvo se o senhor doutor preferir a dieta, isto é, outra carne, outro peixe, outra sopa, eu aconselharia, para começar a habituar-se a esta nova alimentação, recém-chegado do trópico depois duma ausência de dezasseis anos, até isto já se sabe na sala de jantar e na cozinha. A porta que dá para a recepção foi entretanto empurrada, entrou um casal com dois filhos crianças, menino, menina, cor de cera eles, sanguíneos os pais, mas todos legítimos pelas parecenças, o chefe da família à frente, guia da tribo, a mãe tocando as crias que vão no meio. Depois apareceu um homem gordo, pesado, com uma corrente de ouro atravessada sobre o estômago, de bolsinho a bolsinho do colete, e logo a seguir outro homem, magríssimo, de gravata preta e fumo no braço, ninguém mais entrou durante este quarto de hora, ouvem-se os talheres tocando os pratos, o pai dos meninos, imperioso, bate com a faca no copo para chamar o criado, o homem magro, ofendido no luto e na educação, fita-o severamente, o gordo mastiga, plácido. Ricardo Reis contempla as olhas da canja de galinha, acabou por escolher a dieta, obedeceu. à sugestão, por indiferença, não por lhe ter encontrado particular vantagem. Um rufar nas vidraças advertiu-o de que recomeçara a chover. Estas janelas não dão para a Rua do Alecrim, que rua será, não se recorda, se alguma vez o soube, mas o criado que vem mudar o prato explica. Aqui é a Rua Nova do Carvalho, senhor doutor, e perguntou. Então, gostou da canja, pela pronúncia se vê que o criado é galego. Gostei, pela pronúncia já se tinha visto que o hóspede viveu no Brasil, boa gorjeta apanhou-a o Pimenta.
A porta abriu-se outra vez, agora entrou um homem de meia-idade, alto, formal, de rosto comprido e vincado, e uma rapariga de uns vinte anos, se os tem, magra, ainda que mais exacto seria dizer delgada, dirigem-se para a mesa fronteira à de Ricardo Reis, de súbito tornara-se evidente que a mesa estava à espera deles, como um objecto espera a mão que frequentemente o procura e serve, serão hóspedes habituais, talvez os donos do hotel, é interessante como nos esquecemos de que os hotéis têm dono, estes, sejam-no ou não, atravessaram a sala num passo tranquilo como se estivessem em sua própria casa, são coisas que se notam quando se olha com atenção. A rapariga fica de perfil, o homem está de costas, conversam em voz baixa, mas o tom dela subiu quando disse: Não, meu pai, sinto-me bem, são portanto pai e filha, conjunção pouco costumada em hotéis, nestas idades». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT