sábado, 7 de dezembro de 2013

Mal por Mal, antes Pombal. Uma Memória. José Jorge Letria. «… dá a voz a Pombal e a uma boa parte daqueles que o amaram e odiaram. Escutamos as testemunhas que o exaltaram e combateram, assistimos às suas conquistas e dores e presenciamos a queda de um homem poderoso»

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Mal por mal, antes Pombal, expressão popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele iniciadas.

«A rainha que sucedera no trono a seu pai, José I, queria ficar na História como pessoa indulgente, caritativa e jamais movida pelas labaredas da acrimónia e da vingança. Não gostava de Pombal, nunca gostara. Execrava a sua sede de poder, a sua arrogância, os excessos do seu pulso de ferro e o desprezo que nutria por quem tivera berço superior ao seu. Era um homem temível que, pessoalmente, nunca lhe fizera qualquer agravo ou desconsideração, talvez por estar ciente de que, mais tarde ou mais cedo, teria de lhe prestar contas, de se ajoelhar à sua frente para lhe pedir perdão. Se dependesse somente dela, tudo se resolveria com firmeza mas sem alarido, para não se acordarem nos túmulos fantasmas antigos. Porém, o regresso de exilados como o duque de Lafões e de centenas de jesuítas expulsos do país forçava a rainha a mostrar a firmeza do seu mando, ordenando, entre outras medidas, a reabertura do processo dos Távora, com vista à libertação e reabilitação de todos os que Pombal mandara condenar, banir e executar.
Lisboa tornara-se uma cidade anti-Pombal, como se um novo terramoto a abalasse, mas, desta feita, em nome das injustiças que deviam ser reparadas e da limpeza da honra por que tantos clamavam, sobretudo à porta das igrejas, onde narravam, com cópia de pormenores, as malfeitorias de que haviam sido vítimas estando Sebastião José Carvalho Melo no poder. Muita gente se amotinava reclamando a punição exemplar daquele a quem, em tom de chacota, chamavam O Cabeleira, e que agora, degredado nas suas terras de Pombal, padecia dos pestilentos males do corpo por certo como punição divina por tanto mal ter feito a gente piedosa e inocente, a avaliar pela veemência dos testemunhos que ecoavam nas ruas, à mistura com lágrimas, preces e imprecações e súplicas. Com tudo isto fazia o povo coro, repetindo as rimas que verberavam a honra, a dignidade e a honestidade do marquês, antes temido e temível, até pelo porte imponente que alguém em tempos comparara ao do rinoceronte enviado a Roma para espanto do papa.
Raro era o dia em que a rainha não recebia em audiência quem fosse queixar-se de Pombal e dos actos com que agravara Portugal e os portugueses. Por vezes, agastada com a veemência dos testemunhos, dormitava agitada, e depois retirava-se para se refrescar e rezar. Sentada no trono que fora de seu pai, não podia furtar-se a esse encargo, mas estava ciente de que governar devia ser coisa de outra índole e que o seu tempo não podia ser todo consumido com as queixas que envolviam os muitos anos de presença de Pombal no poder. Se tinha de ser castigado, que fosse, mas nunca se devia perder de vista que condená-lo seria também condenar a memória do reinado de seu pai, que Sebastião José engrandecera com muitas medidas severas, mas justas e oportunas. A rainha sabia até que ponto o rei José I confiara no seu ministro, na sua competência e no seu poder de decisão, ciente de que nunca dele partiria qualquer maquinação ou manobra sediciosa que pudesse fazer perigar a sua autoridade real.
Lidava a rainha com um drama de todas as horas: Pombal já pertencia ao passado, mas permanecia obstinadamente presente, desde os pregões populares e das rimas dos cegos até aos sermões dos jesuítas regressados à grandiloquência vingativa e pomposa dos púlpitos. Quisera a rainha ver de vez aquele assunto selado e arquivado, mas faltava cunhá-lo com um libelo acusatório que mantivesse Pombal em Pombal, a morrer lentamente, como se agonizasse num tribunal imaginário, respondendo a múltiplos quesitos, enquanto as feridas corporais se abriam, fétidas e dolorosas, a febre aumentava e a comichão o deixava sem posição nem sossego. Ainda que não houvesse o propósito real de o fazer subir ao cadafalso, era necessário que o povo soubesse que o ex-governante não sairia impune e seria sujeito a uma sentença talhada para o ferir muito mais na honra do que na esperança de vida, já de si tão minguada, tão fugidia. A rainha castiga, mas sem derramar sangue. Decreta contra Pombal, que se vê privado de títulos e honras, mas, ao mesmo tempo, louva a sua acção como estadista. Os perseguidos, os degredados, os espoliados, os que vinham do reinado antigo de João V, querem mais, exigem que se vá mais longe, que role pelo menos uma cabeça. Mas Maria limita-se a fazer cair o medalhão que liga Pombal a seu pai, no pedestal da estátua, no Terreiro do Paço. Para ela, é quanto basta, estando nas suas mãos e não em quaisquer outras o ceptro do mando real». In José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.

Cortesia deCAutor/JDACT