sábado, 21 de dezembro de 2013

Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700. Maria de Lurdes C. Fernandes. «Quais as suas concepções de casamento? Que representava este nas suas vidas e nas suas opções? Quais os seus sentimentos e como influíam no seu quotidiano? Como os conjugavam com as exigências da sua vida social?»

Cortesia de wikipedia

Introdução
«(…) Salientamos os que dizem respeito às relações entre os grupos sociais e os níveis culturais, à articulação do governo da casa com a relação masculino/feminino, ao relacionamento dos casados entre si, desde o económico ao pessoal, e com as respectivas famílias, ao lugar da criança nas preocupações não só de ordem familiar e patrimonial, mas também sentimental e educativa, ao universo simultaneamente familiar, em alguns casos social e individual das mulheres, à influência do religioso e as aspirações espirituais dos casados, etc. Nesta linha de problemas, que têm merecido uma atenção acentuadamente menor, colocam-se alguns mais específicos, como o da articulação entre a imposição paterna e o reconhecimento pelo Direito Canónico do casamento consensual; o da motivação, das motivações, dos casamentos clandestinos, o da vida privada dos casados, que não é, obviamente, apenas o da sexualidade; o da relação entre a moral cristã e a moral conjugal; o da relação entre as práticas religiosas e espirituais e as obrigações do cumprimento dos deveres conjugais e familiares; o da relação afectiva dos esposos entre si e com os filhos; enfim, ou antes de mais, a oposição virgindade/casamento... Todos estes aspectos que, por seu turno, se relacionam intimamente com o jogo das práticas e das representações culturais, tendo sido, por vezes, objecto de estudo, quase sempre parcelar ou muito específico, necessitam ainda de pesquisas mais aprofundadas e pormenorizadas, que não só a busca do documento inédito, no sentido de lhes procurar a importância que verdadeiramente podem ter tido. Assim, no que diz respeito às formas de vida e comportamento social da nobreza, ou de alguns senhores, à sua ideologia e mesmo a algumas das suas representações, e de alguns grupos sociais mais próximos dela, muito se vai sabendo, também é verdade que, para além do óbvio e, logo, do tópico, muito pouco ainda se conhece, apesar de tudo, das suas preocupações íntimas, dos seus anseios pessoais, das suas práticas atitudes...
E se tentarmos penetrar nos grupos sociais menos influentes e menos prestigiados, dos quais pouco mais do que o silêncio tem chegado até nós, quantas dúvidas e quantas interrogações sem resposta... Quais as suas concepções de casamento? Que representava este nas suas vidas e nas suas opções? Quais os seus sentimentos e como influíam no seu quotidiano? Quais os seus hábitos religiosos e práticas espirituais? Como eram orientados? Como os conjugavam com as exigências da sua vida social? Estas perguntas, apesar de já muitas vezes feitas, e muitas permanecerão sem resposta, orientaram e continuarão a orientar as pesquisas aqui pretendidas. Há, que continuar a re-ler os textos, sejam eles de natureza jurídica, institucional, política, moral, religiosa ou literária; há que interrogá-los, na sua especificidade e na relação eventual que tenham, ou possam ter, entre si; há que compará-los, há ainda que continuar a procurá-los e, porque não, interrogar também os silêncios e as omissões. De facto, apesar dos muitos progressos já feitos na investigação histórica, e independentemente das lacunas que continuarão a existir, têm sido pouco explorados certos tipos de fontes pouco evidentes, mas em que o tema do casamento, nas suas múltiplas facetas, surge ou é mesmo determinante. Essas fontes, que não apenas as legislativas, normativas e as que focam explicitamente o problema, (casamento, mulher, celibato) são, de facto, múltiplas: desde as obras de espiritualidade até aos tratados ascético-morais; das obras ad status como alguns sermões, os espelhos de príncipes, de senhores, de religiosos, os manuais para confessores e pregadores e mesmo os catecismos, até às crónicas e relações de festas de casamento; das vidas de santos e/ou pessoas ilustres ou exemplares até às cartas ou epístolas várias, passando pelos provérbios e outros textos ditos menores. Enfim, ou antes de mais, os espelhos de casados, que nos abrem o caminho para termos acesso, simultaneamente, à especificidade da espiritualidade do casamento e à sua relação ou contextualização na espiritualidade cristã desses séculos.
Estas fontes, doutrinárias, morais, pedagógicas..., constituem um vasto e diversificado conjunto de registos em que o casamento, de forma mais ou menos evidente ou preponderante, surge, com frequência, tratado, implicitamente ou por alusão, quando não motivador... Não esqueçamos que muitas destas obras, nomeadamente as que tinham intuitos catequéticos e pedagógicos, tiveram entre os seus objectivos principais o de contribuir, socorrendo-se de métodos e retórica próprios, para a divulgação e aceitação das normas canónicas e dos princípios doutrinários, o que, no caso do matrimónio, se traduziu não só na definição e institucionalização de uma teologia sacramental do matrimónio, mas também na criação e aprofundamento de uma espiritualidade, se não própria, pelo menos adaptável aos casados». In Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.

Cortesia de ICP/FLFP/JDACT