terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «… recupera a memória de Sancho II, afirmando perentoriamente de que este foi um ‘rei injustiçado’ e muitas das estórias que se contavam não faziam jus aos feitos daquele monarca»

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Sancho II de Portugal. Um conspecto historiográfico
«(…) A maior parte das obras consultadas são obras de continuação, compilações ou meros resumos de outras, que as antecederam, e que pela sua forma e objectivos das obras de formação erudita. A opção por integrar, ambos os modelos, num processo de observação cronológico, também possibilita, pensamos, a percepção dos processos que levaram à sua elaboração. Afinal, repetida até à exaustão, ou observada com os métodos críticos disponíveis no momento, a construção da imagem de Sancho II corresponde a objectivos bem determinados. Se, à partida, possa parecer relevante a opção por aquelas obras que marcaram viragens historiográficas, ou seja, neste caso concreto, aqueles trabalhos que trouxeram novidades ao estudo da história do reinado de Sancho II, também nos pareceu interessante observarmos o acumular dos processos repetitivos reproduzidos, cronologicamente, em muitas histórias com carácter eminentemente divulgativo. Estas obras que não utilizam como suporte investigações originais, antes resultam do trabalho de recompilação, de síntese de memórias anteriores, ou de reescrita, sem sentido crítico, pareceram-nos ocupar um lugar próprio no que diz respeito à forma como a memória deste rei, o que foi deposto, foi construída e depois, ensinada e divulgada, desde os inícios do século XIX até aos nossos dias. E, é por isso que ao lado de obras de perfil marcadamente erudito e pautadas pela dinâmica das fontes e da sua interminável crítica, desfilam algumas dessas obras repetitivas e constantemente reescritas com as mesmas passagens. Se, por um lado, garantimos a apresentação de um estado da questão historiográfico, que evoluiu cronologicamente, por outro, associamos-lhe outra realidade, também inegavelmente de sentido cronológico, e que está representada por esta historiografia divulgativa.

As Histórias Gerais
Todos os compêndios de história geral de Portugal apresentam um capítulo, de dimensão variada, descritivo da figura e dos feitos de Sancho II. Estes primeiros trabalhos desenvolvem essencialmente quadros de observação influenciados pela tradição cronística e onde o tratamento de fontes documentais é quase ignorado. São histórias que narram os sucessos militares, civis, eclesiásticos, etc., e limitam-se a isso mesmo, a produzir narrativas sobre acontecimentos de diversa índole. São obras que na maior parte das vezes têm perante si objectivos de índole pedagógica e divulgativa. No fundo particularizam uma escrita muito própria, virada para as massas que pretendem educar, e onde os feitos, os acontecimentos, são narrados, muitas vezes de forma romanceada, e sem recurso à utilização de métodos críticos ou de verificação do que comentam. O tratamento dado aos acontecimentos do reinado de Sancho II é, por isso superficial, e geralmente repetitivo de modelos anteriores onde, as personagens, se apresentam sobre a forma de estereótipos, sendo avaliados sempre da mesma maneira e com o sentido de produzir um sentimento de continuidade histórica, pouco problematizada, e centrada apenas na evolução da realidade interna. O modelo do rei incapaz, porque frágil, doente, pouco enérgico, influenciável por um conjunto de personagens sinistras, que tantas vezes é referido na cronística, vale como um desses modelos simplificados.
A problemática das fontes é geralmente subalternizada, quando não esquecida, por estes divulgadores, que deixam de fora outros aspectos da história, mais comum a versões eruditas, como o estudo da genealogia, o processo de investigação, ou a aplicação da hermenêutica. Neste sentido, estas histórias gerais, de fundo divulgativo, são especializadas também em aprofundar os silêncios sobre determinados factos, verdadeiros ou lendários, e sobre figuras cujo percurso apresenta algumas dificuldades de apresentação. Não as acusando individualmente todas esta obras padecem de um conjunto de omissões, claramente assumidas, em função do período em que são produzidas e do público a que se destinam e, no caso de Sancho II, colocam o leitor perante a imagem do anti-herói, do rei que a nação não pode homenagear, mas que se apresenta de forma longínqua e cujo fim é redentor da nação. As histórias gerais sobre Portugal conhecem outro período de grande desenvolvimento com o Estado Novo, onde a importância da coesão nacional dirigida para um propósito muito bem definido, produz modelos patrióticos e heróicos, onde figuras como a de Sancho II encontram pouca simpatia. Nem mesmo a vertente, assumida por historiadores como António Brandão e Alexandre Herculano, de que este rei é responsável por um dos momentos de maior expansão territorial no reino, é utilizada para valorizar a sua imagem. A posição tradicional assumida por muitos destes historiadores, sobre a participação militar deste rei, é a da sua desvalorização, já que a versão oficial assenta a dinâmica da conquista nas campanhas dirigidas pelos mestres das ordens militares.

Fr. António Brandão (1632)
(Quarta parte da Monarchia Lusitana que conthem a Historia do reyno de Portugal, desde o tempo delRey D. Sancho I, até o reynado delRey D. Affonso III. Lisboa, ed. por Pedro Crasbeek, 1632)
Escrita há trezentos e oitenta e um anos (JDACT) a Quarta Parte da Monarquia Lusitana…, marca o nascimento da historiografia portuguesa. Apesar de aparecer em jeito de crónica caracteriza-se já por apresentar um notável espírito crítico em relação às informações que reproduz. No caso particular do reinado que nos interessa é comum produzir juízos de valor sobre a forma que as crónicas antigas do reino trataram a memória daquele rei, apontando incoerências, contradições, impossibilidades e mentiras, chegando mesmo a corrigir, utilizando processos comparativos, ou verificando se são verdadeiros ou falsos, documentos notariais, bulas papais e instrumentos particulares. E, neste aspecto, está uma das novidades, a utilização crítica de fontes documentais ao lado da interpretação rigorosa e desconfiada das informações que crónicas e livros de linhagens fizeram chegar ao século XVII, altura em que o distinto cisterciense escreveu». In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT