domingo, 29 de dezembro de 2013

Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «… cada uma delas observável nos documentos e nas narrativas que impregnam este reinado. Cada uma delas disputada por este rei, “um dos mais obscuros da nossa história”»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eram tempos de ...roubo e malfeitoria..., expressões constantes nos documentos que traduzem um estado de agitação e violência, que acabam por precipitar o País numa guerra civil, travada entre os partidários do rei e aqueles que contra a realeza se manifestavam, ou melhor, aqueles que se perfilavam contra a centralização do poder levada a cabo pelo rei e sua cúria. Mas o reinado de Sancho II marca, também, o predomínio dos cavaleiros cristãos nas terras alentejanas. O esforço de guerra que, nos reinados anteriores, serviu para garantir ao monarca, através do alargamento dos seus domínios, um controlo razoável das tensões aristocráticas, parece agora não se revelar tão eficaz, no sentido de debelar um cada vez maior sentimento de revolta contra o poder régio. É o quadro destas instabilidades que pretendemos estudar. As suas origens, os seus processos evolutivos, o estado e a forma das instituições políticas na transição do poder de Afonso II para Sancho II e subsequentemente para Afonso III, a acção da cúria régia, como órgão fundamental na estratégia da acção do Estado e no controlo da sociedade portuguesa de meados do século XIII.
Da guerra nos campos do Alentejo e a tentativa de controlo das passagens algarvias, contra um inimigo comum, à luta civil que leva à deposição do rei, pretendemos observar o quadro de tensões e fracturas que caracterizaram este reinado e que marcam o Portugal de 1223 a 1248 como um País onde ocorre uma grave crise política. E se a visão interna nos orienta a curiosidade, também não podemos deixar de fora o contexto internacional e a dinâmica de uma Cristandade da qual o reino português faz parte. A dinâmica relacional com as monarquias peninsulares, os conflitos e as composições entre este Centro nacional e a Santa Sé, a observação comportamental dos diferentes universos políticos, entre os quais Portugal se coloca, a influência e introdução progressiva de novos sistemas de organização política e social, a turbulência do sistema dualista, caracterizado pelo diálogo interminável entre o modelo canónico e o direito civil, herdeiro do sistema romano, são aspectos que nos prendem e que se tornam vitais e funcionais na percepção do conflito funcional do rei. Bonus rex, rex inutilis, duas faces, cada uma delas possível de ser aplicada aos soberanos, cada uma delas observável nos documentos e nas narrativas que impregnam este reinado. Cada uma delas disputada por este rei, um dos mais obscuros da nossa história, mas um dos que levou mais longe o estandarte do reino e também o único a ser vítima de um conceito de poder superior.
Como mais alguns reis do seu tempo, e até imperadores, Sancho II de Portugal travou conhecimento de muito perto com a teoria da superioridade papal sobre as administrações civis. Soube, de facto, o significado do conceito de Plenitudo Potestatis. Rex inutilis? Veremos.

Sancho II de Portugal. Um conspecto historiográfico
Do Conspecto
Qual é a memória que nos resta de Sancho II, o quarto rei de Portugal? Da sua vida, dos seus feitos, da sua governação, das suas desditas, do seu fim? Existe uma necessidade imperiosa: a da reconstituição, a mais rigorosa possível, daqueles tempos e do que neles sucedeu. E se não conseguimos apreender a vida, tal como ela era, as suas palpitações, as suas tragédias, o seu quotidiano pleno, cheio de acções e sensações, podemos pelo menos procurar compreender e explicar alguns comportamentos e atitudes do colectivo português durante grande parte da centúria de Duzentos. E podemos fazê-lo com os textos e fontes escritas, mais ou menos coevas, e com as interpretações que as várias décadas de interpretação e síntese histórica foram capazes de produzir sobre aquele rei e as variadas peripécias do seu reinado. E estas interpretações, por vezes tão diferentes, permitem-nos assentar, desde já num primeiro problema em torno deste reinado: o problema historiográfico.
A questão é fazer o ponto da situação sobre os conhecimentos existentes e fixados em torno daquele monarca. Como é que ao longo do processo historiográfico português, se foi edificando e transmitindo o conhecimento e a memória que hoje possuímos sobre Sancho II? Do que nos resta das fontes, da historiografia que as abordou e sobre elas estruturou informação, da forma como o ensino da história, nas suas várias épocas, tratou este rei, da imagem formada, clara ou distorcida, e propagandeada, destinada muitas vezes a cumprir objectivos actuais e que pouco tinham a ver com a rigorosa reconstrução da história, das diferentes obras e autores que sobre o rei capelo se pronunciaram, de tudo isto queremos falar, e com tudo isto pretendemos marcar um momento, o ponto actual sobre o estado da nação entre os anos de 1223 e 1248».

In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT