domingo, 8 de dezembro de 2013

Bastardos Reais. Os Filhos Ilegítimos dos Reis de Portugal. Isabel Lencastre. «A influência dos bastardos reais na sociedade portuguesa prevaleceu até aos dias de hoje, através de descendentes… Com sabedoria, rigor e requinte, desvenda a história que faltava contar…»

João José da Áustria, bastardo de Filipe III de Portugal
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«No trono de Portugal sentaram-se, ao longo de quase oito séculos, duas mulheres e trinta e dois homens. Destes, seis, solteiros ou casados, não tiveram filhos: Sancho II, Sebastião I, cardeal-rei Henrique, Afonso VI, Pedro V e Manuel II. Dos vinte e seis restantes, apenas dois. Manuel I e José I, não terão tido filhos ilegítimos. Todos os outros foram (ou diz-se que foram) pais de bastardos, nome porque são entendidos já desde a Idade Média não só os filhos especificamente chamados naturais mas também os espúrios e em geral todos aqueles que não são gerados de verdadeiro e legítimo matrimónio, como escreveu Pascoal José Freire nas suas Instituições de Direito Civil Português. O rol destes bastardos, havidos fora do casamento dos seus pais, nunca estará completo, tanto mais que muitos deles nunca foram reconhecidos, o que torna difícil estabelecer com precisão o número dos filhos da mão esquerda que os reis de Portugal tiveram. Em todo o caso, pode afirmar-se com segurança que os bastardos reais, desde a fundação da Monarquia até à implantação da República, se contam por várias dezenas. Na maior base de dados genealógicos portuguesa, a Geneall, estão referenciados 77 filhos ilegítimos de 19 príncipes que reinaram em Portugal. Este número pode, no entanto, pecar por defeito: só a Pedro de Alcântara, imperador do Brasil e rei de Portugal, houve quem atribuísse, em 1826, a paternidade de 43 bastardos!
Os bastardos reais atravessam a história da Monarquia Lusitana desde a sua fundação até, quase ao seu termo. O primeiro rei nasceu de uma bastarda, afirmando alguns que não era filho de seu pai, o conde Henrique de Borgonha; bastardo era também o rei de Boa Memória que deu origem à segunda dinastia; e um bastardo está na origem da Casa de Bragança, que, a partir de 1640, foi a Casa Real portuguesa. O mesmo sucede, aliás, com a terceira dinastia, a dos Filipes de Espanha, directos descendentes de Henrique de Trastâmara, que reinou em Castela como Henrique II e era filho ilegítimo do rei Afonso XI. Muitos desses bastardos reais ocuparam posições de relevo na corte e no país, sobretudo na primeira dinastia, quando foram mais numerosos. Como se compreende: na Idade Média, a bastardia inscrevia-se nas estruturas da boa sociedade. Os filhos ilegítimos de Afonso Henriques, tal como os de Dinis I, por exemplo, desempenharam funções de tanta importância e consequência como eram, por esse tempo, as de mordomo-mor ou de alferes-mor. O bastardo de João I foi, em sua vida, o principal senhor do reino, posição que Jorge, filho adulterino de João II, só não alcançou porque o rei Manuel I não cumpriu inteiramente as últimas vontades do seu antecessor. Outros bastardos régios foram figuras de relevo na Igreja portuguesa, e um deles, filho de João V, deu origem à ilustre Casa de Lafões.
Os filhos ilegítimos dos reis concorreram, além disso, com os seus casamentos para reforçar o poder dos reis seus pais ou irmãos, aliando-se em Portugal às famílias mais poderosas e, regra geral, renitentes em acatar os poderes e as prerrogativas reais. Como notou José Augusto Pizarro, bastardos reais constituíram um patamar intermédio por onde passavam alguns dos contactos mais importantes entre a realeza e as linhagens da alta nobreza. E não foram poucos os monarcas que, casando os seus bastardos em grandes casas senhoriais, alimentaram com o seu sangue a prosápia das famílias mais poderosas, ganharam o seu apoio, declarado ou silencioso, e nele escudaram a sua política centralizadora. A esse propósito obedeceram, entre outros, os casamentos dos bastardos de Afonso III ou de Dinis I, mas também o de Afonso, bastardo de João I, com a filha de Nuno Álvares Pereira (embora outras razões possam explicar melhor este matrimónio) e, ainda, séculos depois, o de D. Luísa, filha ilegítima de Pedro II, com o duque de Cadaval. O mesmo objectivo de afirmação do poder real, aquém mas também além-fronteiras, foi prosseguido com os casamentos de bastardos régios em reinos vizinhos ou amigos, para cuja realização, aliás, concorreram as legítimas esposas dos monarcas reinantes (e pais dos bastardos). Foi o que sucedeu, por exemplo, com o casamento de Pedro Afonso, conde de Barcelos, filho ilegítimo de Dinis I, realizado em Aragão com a empenhada ajuda da rainha Santa Isabel, sua madrasta, ou com o casamento em Inglaterra de D. Beatriz, filha ilegítima de João I, para o qual foi decisivo o concurso de D. Filipa de Lencastre». In Isabel Lencastre, Bastardos Reais, Os Filhos Ilegítimos dos Reis de Portugal, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-845-2.

Cortesia de Oficina do Livro/JDACT