segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A Varanda de Natércia. Literatura. Alberto Pimentel. «Assi, senhora, quer minha ventura que ferido de vêr-vos claramente, com tornar-vos a vêr Amor me cura. Mas é tão doce vossa formosura, que fico como o hydropico doente, que bebendo lhe cresce mór secura»

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De acordo com o original

«(…) O que sentia hora a hora só o poderia explicar tentando dizer o que era o amor…

Amor é um fogo que arde sem se vêr;
é ferida que doe e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dôr que desalma sem doer.

Pois era isto mesmo o que elle sentia, esta vaga anciedade, o andar solitário por entre a gente, o estar preso por vontade, um servir a quem vence o vencedor… N'esta conjunctura chegou a Coimbra um subtil boato referido n'uma carta de Lisboa para o mosteiro de Santa Cruz: que António Lima queria maridar a filha na corte. Este inesperado golpe feriu profundamente a alma do poeta. Era pois certo que d'elle se havia esquecido inteiramente?! Oh! Quem a Luiz de Camões

………..dissera
que d'amor tão profundo
o fim podesse vir eu algum'hora!

A principio, esse vago rumor desalentara-o, já não era lembrado por aquella em quem não deixara de pensar um só instante…

Por que te vás de quem por ti se perde,
para quem pouco te ama? (suspirava)
e o ecco lhe responde: pouco te ama.

Finalmente, elle, sempre forte, mesmo nas fraquezas do amor, resolvera voltar á corte, queria acabar a vida na triste consolação de vêr mais uma vez a formosa que o esquecera. Despediu-se d'essa florida terra, da bella Coimbra, onde tempo longo passou folgando com a vida, e onde sonhara que não haveria no mundo quem pudesse apartal-o d’aquella gentil senhora. Queria despedir-se d’ella para todo o sempre, e depois… viver ou morrer abraçado com a urna onde guardasse as cinzas d’aquelle vão pensamento… Rememorava, como era natural, os tempos passados, o dia em que pela primeira vez a vira, a primeira occasião em que lhe fallára… Coimbra já ficava longe, e a sua saudade voltava-se ainda para avistal-a, como Orpheu para vêr Eurydice:

Vão as serenas aguas
do Mondego descendo,
e mansamente até o mar não páram:
por onde as minhas maguas
pouco a pouco crescendo,
para nunca acabar se começaram.
Ali se me mostráram
n'este lugar ameno,
em qu'inda agora mouro,
testa de neve e d'ouro;
riso brando e suave: olhar sereno;
um gesto delicado
que sempre n'alma me estará pintado.

Ardia-lhe o coração em impaciências de chegar a Lisboa. D. Maria de Távora, a meiga companheira de Catharina, foi a alma que Luiz de Camões escolheu para receber a triste confidencia do seu desanimo, e dos receios que o pungiam por se vêr preferido por quem iria talvez desposal-a sem amal-a. Certificou-o D. Maria de que Catharina não pensava em tomar marido, e de que na sua memoria estava ainda viva a lembrança cuidadosa d’aquelles breves dias de Coimbra. Mas Calharina, aggravada com as suspeitas de Camões, esquivava-se a vel-o, e nem a mediação da sua terna amiga conseguia abrandal-a. O que não pôde, porém, fazer a solicitude de D. Maria de Távora logrou-o a lyra de Camões, vibrando este sublime grito de desespero:

Dae-me úa lei, senhora, de querer-vos,
porque a guarde sob pena de enojar-vos;
pois a fé que me obriga a tanto amar-vos
fará que fique em lei de obedecer-vos.

Tudo me defendei, senão só vêr-vos
e dentro na minha alma contemplar-vos;
que se assi não chegar a contentar-vos,
Ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.

E se essa condição cruel e esquiva
que me deis lei de vida não consente,
dae-m'a, senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me daes, é bem que viva,
sem saber como vivo, tristemente;
mas contente estarei com a minha sorte.

O amor rendeu-se á poesia. O coração namorado não se agasta para resistir, senão para se deixar vencer mais depressa. A formosa esquiva consentiu finalmente em deixar-se vêr de uma das janelas do paço da Ribeira. Os olhos de Camões absorviam-n’a cubicosos. O idyllio da janella começara desde esse momento. Na alma de Camões irrompera de novo, vehemente, impetuoso, o grande incêndio que ao mesmo passo o queimava e fortalecia:

Ferido sem ter cura perecia
o forte e duro Télepho temido
por aquelle que na agua foi mettido
e a quem ferro nenhum cortar podia.

Quando a Apollineo Oraculo pedia
conselho para ser restituido,
respondeu-lhe, tornasse a ser ferido
por quem o já ferira, e sararia.

Assi, senhora, quer minha ventura
que ferido de vêr-vos claramente,
com tornar-vos a vêr Amor me cura.

Mas é tão doce vossa formosura,
que fico como o hydropico doente,
que bebendo lhe cresce mór seccura.
………………………….

Naquelles tempos, as bellas senhoras, debruçadas no peitoril da janella, ditavam leis ao mundo». In Alberto Pimentel, A Varanda de Nathercia, pq 9261 p46 v3, Oficina Tipographica da Empreza Litteraria de Lisboa, 1880.

Cortesia de EL de Lisboa/JDACT