sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Uma História da Leitura. Alberto Manguel. «… o tecelão a ler o desenho complicado de um tapete a ser tecido; o organista a ler várias pautas de música orquestradas na página; os pais a lerem no rosto do bebé sinais de alegria, medo ou surpresa; o adivinho chinês a ler as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga»

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Ler para Viver. In Flaubert

A Última Página
«(…) No entanto, estas revelações eram actos comuns de magia, menos interessantes porque alguém os tinha realizado por mim. Um outro leitor, talvez a minha ama, tinha-me explicado as formas e depois, de cada vez que as páginas se abriam para revelar a imagem deste exuberante menino, eu sabia o que as .formas debaixo dele queriam dizer. Havia nisto um certo prazer, mas depressa se esgotou. Faltava a surpresa. Então, um dia, da janela de um carro (o destino dessa viagem está esquecido), vi um cartaz ao lado da estrada. Não o devo ter visto durante muito tempo; talvez o carro tenha parado por um momento, talvez tenha abrandado o suficiente para eu poder ver, a pairarem em ponto grande, formas semelhantes às do meu livro, mas que eu nunca vira. No entanto, de repente, soube o que elas eram; ouvi-as na minha cabeça, o resultado de uma metamorfose de linhas pretas e espaços brancos numa realidade sólida, sonora é com sentido. Tinha feito tudo isto sozinho. Ninguém realizara a magia por mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos mutuamente, num diálogo em respeitoso silêncio. Ao conseguir transformar simples linhas em realidade viva, tornara-me todo-poderoso. Sabia ler.
Já não me lembro de qual era a palavra do cartaz desse passado distante (recordo vagamente uma palavra com vários ás), mas a impressão de subitamente ser capaz de compreender o que antes só podia ver permanece tão nítida hoje como naquela altura. Foi como adquirir um sentido inteiramente novo, de modo que a partir desse momento certas coisas não consistiam apenas no que os meus olhos viam, os meus ouvidos ouviam, a minha língua saboreava, o meu nariz cheirava, os meus dedos sentiam, mas também no que o meu corpo todo decifrava, traduzia, lia, em tudo aquilo a que dava voz. Os leitores de livros, em cuja família eu estava a entrar sem o saber (pensamos sempre que estamos sós em cada descoberta e que cada experiência, da morte ao nascimento, é aterradoramente singular), expandem ou condensam uma função que nos é comum a todos. Ler letras numa página é apenas uma das suas muitas manifestações. O astrónomo a ler um mapa de estrelas que já não existem; o arquitecto japonês a ler a terra onde uma casa vai ser construída para a proteger de forças malignas; o zoólogo a ler o rasto dos animais na floresta; o jogador de cartas a ler os gestos do seu parceiro antes de arriscar a carta decisiva; o dançarino a ler as notações do coreógrafo e o público a ler os movimentos do dançarino no palco; o tecelão a ler o desenho complicado de um tapete a ser tecido; o organista a ler várias pautas de música orquestradas na página; os pais a lerem no rosto do bebé sinais de alegria, medo ou surpresa; o adivinho chinês a ler as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante a ler às cegas o corpo da pessoa amada, à noite, entre os lençóis; o psiquiatra a ajudar os pacientes a lerem os seus próprios sonhos confusos; o pescador havaiano a ler as correntes do oceano, mergulhando a mão na água; o lavrador a ler no céu o tempo que vai fazer, todas estas pessoas partilham com o leitor de livros a capacidade de decifrar e traduzir signos.
Algumas destas leituras são influenciadas pelo conhecimento de que a coisa lida foi criada para este fim específico por outros seres humanos, notações musicais ou sinais de trânsito, por exemplo, ou pelos deuses, a carapaça da tartaruga, o céu nocturno. Outras são obra do acaso. Porém, em todos os casos, é o leitor que lê o sentido; é o leitor que reconhece a um objecto, lugar ou acontecimento uma possível legibilidade ou lha concede; é o leitor que tem de atribuir significação a um sistema de signos e em seguida decifrá-lo. Todos nos lemos a nós próprios e ao mundo à nossa volta para vislumbrarmos o que somos e onde estamos. Lemos para compreender ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase tanto como respirar, é uma das nossas funções vitais. Só aprendi a escrever muito mais tarde, quando tinha sete anos. Talvez pudesse viver sem escrever. Não acho que pudesse viver sem ler. Descobri que a leitura precede a escrita. Uma sociedade pode existir, e muitas o fazem, sem a escrita, mas nenhuma sociedade pode existir sem a leitura. Segundo o etnólogo Philippe Descola, as sociedades sem escrita têm um sentido linear do tempo, ao passo que nas sociedades letradas o sentido do tempo é cumulativo; ambos os tipos de sociedade se movimentam dentro destes tempos diferentes, mas igualmente complexos, através da leitura da multiplicidade de signos que o mundo tem para oferecer. Mesmo nas sociedades que registam a sua existência, a leitura precede a escrita; o escritor em potência tem de ser capaz de reconhecer e decifrar o sistema social de signos antes de os inscrever na página. Para a maior parte das sociedades letradas, para o Islão, para as sociedades judaicas e cristãs como a minha, para os antigos Maias, para as vastas culturas budistas, a leitura está na base do contrato social; aprender a ler foi o meu rito de passagem. Depois de ter aprendido a ler as letras, lia tudo: livros, mas também avisos, anúncios, as letras miudinhas nas costas dos bilhetes de eléctrico, cartas deitadas no lixo, jornais velhos apanhados debaixo do meu banco no jardim, grafitos, a contracapa de revistas nas mãos de outros leitores no autocarro. Quando descobri que Cervantes, na sua paixão pela leitura, lia até os pedaços de papel rasgado na rua, fui capaz de reconhecer exactamente o impulso que o dominava. Esta veneração do livro (em pergaminho, papel ou ecrã) é um dos fundamentos de uma sociedade letrada. O Islão leva esta ideia ainda mais longe: o Alcorão não é, apenas uma criação de Deus, mas também um dos Seus atributos, tal como a Sua omnipresença ou a Sua compaixão». In Alberto Manguel, Uma História da Leitura, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-2339-3.

Cortesia Presença/JDACT