quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Os dias de Hoje. O Fim da Inocência. Diário Secreto de Uma Adolescente Portuguesa. Francisco Salgueiro. «Coloquei-o no ‘snooze’ várias vezes. À quarta vez, tomei oficialmente a decisão de me baldar. Uns segundos depois senti vários toques na porta. Era a empregada. A Cesária. Uma cabo-verdiana que os meus pais trouxeram daquele país há uns dois anos e tal»



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«(…) Tudo começou esta manhã, quando o alarme tocou às dez. Senti-me com falta de pachorra para ir às aulas. Queria ficar a dormir, pelo menos, dois dias de seguida. A noite fora passada com o homem de quem eu gosto. Os meus pais estão no estrangeiro há vários dias, e em minha casa apenas se encontrava a nossa empregada. A minha irmã, Mafalda, mais velha um ano, tinha aproveitado a ausência deles para ir dormir a casa do namorado. Quando o alarme tocou, não me apeteceu levantar. Coloquei-o no snooze várias vezes. À quarta vez, tomei oficialmente a decisão de me baldar.
Uns segundos depois senti vários toques na porta. Era a empregada. A Cesária. Uma cabo-verdiana que os meus pais trouxeram daquele país há uns dois anos e tal. Os meus pais trabalham na área do imobiliário. Quero dizer, os meus pais, não. A minha mãe e o meu padrasto. Ele tem uma agência de imobiliário. Sempre morou em Cascais, sempre teve dinheiro de família e ficou com as várias lojas que herdou do pai. Ele trata da maior parte das vendas mais caras na zona de Cascais, Quinta da Marinha, Gandarinha e Quinta Patiño. Quanto à minha mãe, sempre se habituou a não fazer nada. O meu pai tinha uma empresa de construção civil. Segundo diziam, era um dos homens mais requisitados em Cascais nos anos oitenta.
Isso é a história que contam. Eu não sei, porque nunca o conheci realmente. Quando eu tinha três anos, ele morreu num acidente de carro na marginal. Naquele tempo, a marginal era a estrada mais perigosa da capital. Uma noite, depois de um jantar em Lisboa, os dois iam buscar-nos a casa da minha avó. Após uma intensa chuvada, a estrada estava toda molhada e um carro que vinha na direcção contrária perdeu o controlo e chocou de frente com eles. Na viatura iam uns miúdos bêbedos. Estavam a fazer uma corrida com um carro que seguia mesmo atrás deles. O meu pai teve morte imediata. A minha mãe ficou uns dias em coma, mas resistiu.
A minha mãe sempre se habituara a viver bem. O meu pai ganhava muito dinheiro. Com a morte dele, porém, a empresa desagregou-se e em pouco tempo faliu. A minha mãe ficou sem dinheiro vivo todos os meses. Como tinham bastantes reservas no banco, numas contas na Suíça e em offshores, a minha mãe não deixou de levar o estilo de vida a que estava acostumada. O dinheiro foi desaparecendo, e só quando o contabilista lhe disse que, se continuasse a gastar daquela maneira, iria ficar rapidamente sem nada é que ela percebeu que tinha de fazer alguma coisa. Na vida de uma pessoa normal o primeiro passo seria começar a trabalhar. Só que ela tinha apenas o décimo segundo ano. Sempre achara que iria ter a vida de sonho com o meu pai e não precisava de um curso superior. O que veio a acontecer. No entanto, esqueceu-se que no conto perfeito pode haver azares.
Nessa altura decidiu começar à procura de outro marido. A minha mãe sempre fora uma das mulheres mais bonitas de Cascais. Nos anos oitenta também era das mais concorridas, e apesar de na época não haver a quantidade de revistas que hoje se vêm, nas poucas crónicas sociais que existiam, ela aparecia quase sempre. Ela e o meu pai eram considerados um casal perfeito. Eu e a minha irmã tivemos a sorte de, fisicamente falando, ficar com o melhor dos dois.
Voltando à minha mãe. Ela recomeçou a sair socialmente para encontrar o marido seguinte. Dois anos depois da morte do meu pai, quando eu já tinha cinco anos, casou-se com o Fernando. Ele era rico, tinha bom ar (apesar de não ser tão bonito como o seu pai, segundo me dizem as amigas da minha mãe) e podia dar-lhe o estilo de vida a que sempre se tinha habituado. Entretanto, eu e a minha irmã estávamos entregues a várias pessoas da família. Alternávamos entre a casa da minha avó materna, e as de tias e tios de sangue e por afinidade». In Francisco Salgueiro, O Fim da Inocência, Diário Secreto de Uma Adolescente Portuguesa, Oficina do Livro, Lisboa, 2010, ISBN: 978 989 555 19 6.

Cortesia de Oficina do Livro/JDACT