sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Muçulmanos. Cristãos. Judeus. Toledo. Séculos XII-XIII. «Contaste os leóes? - Sim, doze leões que representam as doze tribos de Israel, e a estrela de David, que tão bem assinalaste, lembra-nos também a origem dessas esculturas. Ornaram, há vários séculos, o palácio do juiz Ibn Nagrila…»

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Um toledano diferente dos outros
«(…) O meu coração sangrou especialmente por ocasião da tomada desta última cidade; na verdade, em 646, com muitos amigos granadinos fomos dar ajuda às tropas de Toledo. Sim, contra os nossos próprios correligionários! A política assim o exigia: o novo reino de Granada tinha de manter um difícil equilíbrio entre os nossos dois poderosos vizinhos dado que um e outro estavam mais do que dispostos a anexar-nos. Por vezes, aliámo-nos aos Merinidas de Marrocos para nos protegermos dos Castelhanos, outras vezes aos Castelhanos para repelir os Merinidas. Tínhamos de dar garantias tanto a uns como a outros. Mas destes séculos passados em Granada, guardo sobretudo a recordação dos dias felizes. Foram numerosos porque, nesta cidade, encontrava essa mesma vida espiritual, essa alegria de aprender e também de ensinar que outrora conhecera em Toledo. Bastava o meu nome de Tulaytuli para me abrir uitas portas incluindo as do palácio do meu sultão. Fui mesmo conselheiro e confidente de Muhammad V. Vivi na sua companhia, no maravilhoso palácio de Alhambra. Quando terminavam as audiências concedidas ao povo na sala do Mexuar, e depois dos notáveis terem sido recebidos na sala do trono, o meu rei pedia-me que o seguisse até às zonas privadas do palácio. Aí, sentados no chão durante horas, conversando, gozávamos da frescura dos jactos de água, da verdura dos jardins, da luz que brincava nas fachadas cobertas por uma decoração infinita; por vezes o meu olhar seguia uma das linhas dos cordões de estuque e essa linha nunca terminava, símbolo da infinitude divina.
Um dia, testemunho de suprema confiança, detivemo-nos no pátio que marca o centro do harém. Lá em cima, as mulheres dissimuladas por detrás do muxarabiés, deviam estar a olhar-nos; de vez em quando, um riso cristalino vinha juntar as suas notas ao murmúrio da água. No centro, uma fonte magnífica: doze leões de mármore suportam uma grande bacia. Cada leão tem na fronte a estrela de David. Com a cabeça virada para o exterior, parecem guardar o jacto de água central; mas são também parte integrante da fonte, visto que a água, inicialmente recolhida na bacia de mármore branco, sai pelas fauces de cada um deles para depois cair numa regueira que a distribui por quatro canais. Precisamente, neste dia, a nossa conversa recaiu sobre essa fonte e sobre esse pátio, e posso reproduzi-la com toda a fidelidade. Nessa ocasião, compreendi até que ponto o meu soberano era digno do seu título de Príncipe dos Crentes. Era como esse monarca ideal que Ibn Zafar apresentava como mais raro do que o ouro, mais maravilhoso do que o grifo e mais extraordinário do que a alquimia.
 - Príncipe - disse-lhe, essa estrela de David na fronte dos leões intriga-me. Por que razão está esse símbolo religioso dos nossos irmãos judeus neste local? O meu sultão pareceu meditar por instantes como que para reunir velhas recordações há muito ocultas no mais profundo do seu ser. Disse-me apenas: - Contaste os leóes? - São doze, respondi. - Deu-me então esta longa explicação: - Sim, doze leões que representam as doze tribos de Israel, e a estrela de David, que tão bem assinalaste, lembra-nos também a origem dessas esculturas. Ornaram, há vários séculos, o palácio do juiz Ibn Nagrila, vizir de um dos reis ziridas de Granada. Reparaste decerto também, amigo Tulaytuli, que cada um dos quatro canais que conduzem a água através das platibandas, se dirige para um dos quatro pontos cardeais. Esta água que surgiu no centro do pátio evoca essa fonte que, de acordo com o Alcorão, se encontra no centro do paraíso. O livro do Génesis, na Bíblia, referia já, bem antes, que nascia um rio no Éden que se dividia em quatro braços: Pishon, Gihon, Tigre e Eufrates. Sabes, o Islão é o sinal da Revelação. Antes da vinda de Maomé (Muhammad), antes de este receber a bênção de Deus, os profetas vieram trazer aos homens uma mensagem divina. Javé é Deus, Alá é Deus. Só há um Deus e profetas. O Islão não veio destruir, mas aperfeiçoar e completar. Não te surpreendas pois por encontrares aqui símbolos estranhos à nossa lei. Também eles nos aproximam de Deus. Moisés ensinou-nos que podíamos contemplar Deus cara a cara. Quando recebeu as tábuas da Lei, no alto da montanha do Sinai, foi através de uma nuvem espessa que Javé se lhe dirigiu. Os símbolos aproximam-nos de Deus, e só através destes reflexos podemos aproximar-nos dele. Este pátio não passa de um reflexo longínquo do paraíso a que Ele nos destina. Evocamo-lo, mas não o imitamos, pois Deus não admite que nos associemos à sua obra de criação. Reflexo longínquo, afirmei, sim, pois esse pátio que admiramos não passa, na realidade, do reflexo de um reflexo. Não percebes? Eu explico-te. Aconselho-te a releres o Livro dos Reis na Bíblia». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.

Cortesia de Terramar/JDACT