domingo, 10 de novembro de 2013

Centenário de Nascimento. Até Amanhã, Camaradas. Manuel Tiago. «… e não obedecem a um adjectivo naturalista de autenticação, de efeito do real, mediante a contiguidade de circunstâncias aleatórias à margem da tipicidade essencial»

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«(…) Logo adiante encontrou as primeiras casas, acotoveladas ao longo da estrada inundada. Escorrendo em água, a grande aldeia parecia deserta. Só já no coração da terra descobriu, abrigado num telheiro, um homem gordo em mangas de camisa, com os polegares metidos nas cavas do colete. À sua pergunta, o homem acenou ligeiramente com a cabeça, convidando-o a abrigar-se também. Sempre na mesma posição e no mesmo sítio, mirava atentamente o forasteiro, reparando no seu fato modesto repassado de chuva, no rosto bem barbeado e na pasta de couro pendente do quadro da bicicleta, agora encostada a uma estaca. - Vai lá vender alguma coisa? - perguntou por sua vez. - Não, não vou vender, disse o desconhecido, limpando novamente com o lenço a cara e o pescoço. O outro ficou uns instantes silencioso. Parecia hesitar. Observou com muito interesse o lenço com que o ciclista se limpava e voltou depois a olhar para a pasta de couro, para o fato encharcado, para a estrada inundada e para a chuva caindo. - O senhor não é destes sítios. - Não, não sou. E acrescentou, batendo vigorosamente com os pés no chão para não arrefecer: - Quem havia ontem de dizer o dia que hoje ia estar. - Não era difícil, disse o gordo. - Ontem choveu toda a tarde e de noite a chuva não parou.
O ciclista compreendeu perfeitamente estas palavras. Elas significavam: se não quiseres dizer, não digas o que te obriga a meteres-te ao temporal. Mas não julgues que me comes por parvo. Ao compreendê-las assim, pensou que fizera mal em abrigar-se ali. - Tanta chuva é capaz de dar cabo das culturas. - Não dá cabo de nada, replicou o gordo com voz irritada. - O mal é se não chovesse. Vê-se bem que o senhor não trabalha no campo. Se calhar é viajante. - Não, não sou viajante, respondeu o forasteiro. - Estou a arrefecer por estar parado, acrescentou esfregando as mãos e continuando a bater com os pés. - Meter-se a esta chuva é que com certeza não dá saúde, disse o gordo. O ciclista compreendeu também perfeitamente estas palavras: o que tu queres é ir-te embora para evitares conversa, mas eu entendo-te muito bem. - E o caminho para Vale da Égua? Sai daqui da terra? O gordo, sempre com os dedos nas cavas do colete, não bulia do mesmo sítio. O rosto parecia inalterável. Mas nos olhitos avermelhados adivinhava-se a profunda irritação da curiosidade insatisfeita. - Eu sei lá onde isso fica! - exclamou como se a pergunta fosse um disparate. Sempre a bater os pés no chão, o forasteiro suspendeu o movimento das mãos que esfregava e voltou bruscamente a cabeça para o outro. Instintivamente o gordo deu um passo atrás, como esperando uma agressão. Já o forasteiro, com gestos lentos, ajustava as peúgas por fora das calças encharcadas, aconchegava o boné à cabeça e a gola do casaco ao pescoço, agarrava a bicicleta e saía à estrada. - Então, bom dia. - Vá, com Deus! - respondeu debaixo do telheiro a voz colérica do gordo.
Abrandara o vento, chovia menos, mas, na estrada inundada e cheia de covas, a bicicleta rolava com dificuldade. O ciclista lembrava-se do que lhe haviam dito: apeias-te na estação, perguntas aí e logo te dizem. Não lhe conviera vir de comboio, mas deveria ter-se dirigido na mesma à estação. Pensando que se havia de ver da estrada, resolveu não perguntar nada a ninguém até lá chegar. Diante de um lago lamacento, ensopado em humidade, a estação, tal como a aldeia, parecia deserta. Ninguém no átrio, ninguém no balcão das bagagens, ninguém à bilheteira, ninguém no cais. Nem o ruído de uma voz, nem de qualquer trabalho. Só o tiquetaque da chuva e o gorgolejar de um ralo invisível. Chegado ao fim do cais o forasteiro, ao voltar para trás, deu de súbito com um empregado de calças de ganga e samarra de surrobeco, parado junto ao relógio e olhando distraidamente a linha. À pergunta respondeu calmamente: - o Zé Cavalinho deve estar por aí e já lho indica. Ele é lá desses sítios. - E, olhando a chuva, acrescentou, é um grande ponto, o Zé Cavalinho. Tirou do bolso uma lata com tabaco, serviu-se e ofereceu: - Uma cigarrada? O forasteiro limpou as mãos e fez o seu cigarro. Entretanto o ferroviário enrolara lentamente o tabaco, lambera a mortalha e procurava os fósforos no bolso». In Manuel Tiago, Editorial Avante!, Lisboa, 1989, 2005, ISBN 972-550-212-4.

Cortesia de Avante!/JDACT