quarta-feira, 20 de novembro de 2013

As Saias de Elvira e Outros Ensaios. Eduardo Lourenço. «Ao amor que ascende, ao ‘eros’ grego, contrapõe-se o amor que desce, que não é uma força mas uma fraqueza… Nem ele o esconde, pois largamente o explana através de Amaro, em páginas sobre a Carne, o Diabo e o Mundo»

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«O coche passava, a casa ficava adormecida entre as árvores; através dos vidros embaciados, eu via ao longe a estrela de Vénus». In A Relíquia

Eros e Eça
«(…) Nietzsche viu no amor que São Paulo exalta nas suas Epístolas a transmutação de todos os valores antigos. E com razão, pois essa ideia nova do amor subvertia a ideia grega de eros, aspiração e fascínio natural por tudo o que é belo. Do amor às coisas sensíveis se passa, pela própria natureza do Desejo de possuir um objecto que anule a indigência de que nasceu, segundo Platão, a graus de perfeição cada vez mais altos para atingir, por fim, o supremo Bem. A essência do amor pauliniano, mera extrapolação do exemplo dado por um deus crucificado, humilhado, imagem mesma do abaixamento humano, é oposta à do eros que sobe pelas suas próprias forças e já semideus, se autodiviniza completamente. Ao amor que ascende, ao eros grego, contrapõe-se o amor que desce, que não é uma força mas uma fraqueza no qual o ser humano é menos amante que amado. Sobretudo, não é amor do Alto ou só é do alto por ser do próximo. Toda a história espiritual do Ocidente se pode resumir no conflito entre estas duas versões do amor, que, para retomar o título célebre d'Andres Nygren, opõem Eros a Ágape. Apesar do abismo que as separa, estas duas formas não deixaram de se contaminar uma à outra e provavelmente a sua contaminação nunca foi mais intensa do que hoje, embora a erotização quase absoluta do imaginário contemporâneo só pareça deixar lugar ao Eros cada vez mais grego, mesmo na sua expressão literal.
A própria expressão unívoca de amor induzia essa confusão que conheceu a sua apoteose no que chamamos Renascimento, esse Renascimento que na sua explosão sensual tanto entusiasmou o jovem Eça, a ponto de o trocar pela romântica e mais cristã Idade Média, antes de voltar a ela resignado, mas não convencido, em fim de vida. Na realidade, o Renascimento não foi essa apoteose erótica, em sentido moderno, esse triunfo de Eros sobre Ágape que o nosso primeiro autor realmente erótico imaginou. Foi antes o momento de imaginário equilíbrio entre os dois amores, o amor profano e o amor divino tais como Ticiano os representou, oferecendo no quadro com esse título o retrato da mesma mulher sumptuosa em versão nua e em versão vestida. Escusado dizer que este equilíbrio é fictício e que nele circula o eros na sua mais refinada expressão. Só ficava para o amor divino a tentação de ocupar o lugar do seu antagonista, de se erotizar sensualizando as relações do homem com Deus, em suma, passando da expressão renascentista à expressão barroca.
Sob o álibi divino nunca a cultura do Ocidente cristão conhecera semelhante erotização e tanto mais intensa quanto maior era a inocência de estado dessa cultura, como foi o caso da cultura ibérica e, em particular da nossa, que desconhecera o naturalismo, senão o naturismo, do autêntico Renascimento. Enquanto corpo imaginário, o corpo real das nossas místicas e dos nossos místicos, pois a ficção profana não participa nesse jogo,  experimenta e detalha todos os suspiros, os êxtases, as delícias e os delírios mais obviamente sensuais que se podem imaginar. Como a essência do Desejo é, da ordem do fantasma, podemos sem paradoxo, como o fez em tempos o meu mestre Sílvio de Lima, ver nesses amores santos a apoteose do erotismo. Nem o nosso romantismo, nem sobretudo Eça de Queirós, troçando e retomando-a noutro diapasão, esquecerão a linguagem, a audácia que a familiaridade do corpo imaginário com o objecto divino suscitavam, quando chegar o momento de ficcionar o objecto do desejo como realíssima carne. Pela lógica do nosso imaginário, essa conversão tinha de ser cumprida sob o modo da profanação, do sacrilégio, deslocando o signo transcendente da sua função, mas guardando a forma.
É o que Eça de Queirós leva a cabo em cenas famosas, de estrutura obsessiva, para assinalar ao mesmo tempo a vertigem erótica em estado puro e a inanidade da palavra para a exprimir. Ninguém pode esquecer a célebre cena do Crime em que Amaro reveste Amélia do manto de Nossa Senhora depois de a possuir. É sobejamente conhecido que nenhum momento erótico de conotação ficcional forte dispensa um cenário sacralizado. Como se a cruz desenhada no seu quarto de estudante boémio, baudelairianamente suspenso da dupla postulação em relação a Deus a Satã tivesse ficado nele como uma recordação, ou antes, uma marca indelével. E na verdade ficou, e é por isso que o erotismo queirosiano releva de uma trama, senão metafísica, pelo menos dramática, através da qual se retomam todos os fios do combate espiritual que tem Eros e Cristo como referente. Nem ele o esconde, pois largamente o explana através de Amaro, em páginas sobre a Carne, o Diabo e o Mundo. A sua obra oferecerá ao leitor, complacentemente, o espectáculo desse conflito» . In Eduardo Lourenço, As Saiasde Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.

Cortesia de Gradiva/JDACT