domingo, 24 de novembro de 2013

As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961. Edila Gaitonde. «Depois do fim do chamado “British Raj”, (fulano de tal…) mudou, de uma penada, o nome de ‘colónias’ para ‘províncias ultramarinas’, transformando, assim, qualquer futuro problema internacional “em assunto interno”»

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«(…) Primeiro veio Lica com Hegde e o guarda que o acompanhava. A seguir, o Keni e o Camotim. Ouvira muitas vezes o nome de Priti Camotim, este rapaz alto e simpático que Lica muito estimava e considerava quase como um irmão, mas ainda não o tinha conhecido. Priti chegara de Coimbra, onde estudara Direito, e, como os outros goeses, também estava emocionalmente envolvido com o movimento de libertação. Depois dos aperitivos fomos para a sala de jantar e sentámo-nos à mesa, nos lugares indicados. Ao lado tínhamos colocado, não muito longe de Rama, uma mesa de chá com um lugar para o guarda. Começou a servir-se o almoço. Quando chegou a altura de trazer para a mesa o caril, comecei a ficar muito apreensiva e mal podia concentrar-me noutra coisa. Lica devia ter tomado em consideração a minha ansiedade, pois, mal tinha levado à boca a primeira garfada, voltou-se para mim e disse: Está muito bom. Até suspirei de alívio! Mas logo, do outro lado da mesa, Rama acrescentou: Está mesmo delicioso. O que é?

O dia da nossa partida aproximava-se rapidamente e eu começava a ficar inquieta, com pensamentos confusos de ansiedade e de excitação sobre o nosso futuro. Estava de partida uma vez mais, mas agora, quem poderia sabê-lo? - talvez para sempre. A Índia ficava tão longe e os meios de transporte então existentes tornavam essa distância ainda maior. Partimos para a Índia em Novembro de 1948. Aquele país tinha-se libertado do jugo britânico havia apenas um ano e emergia agora uma nova Índia, vibrante e cheia de esperança num futuro brilhante. Começava também a tentar sacudir do seu solo os últimos colonizadores: França e Portugal.
A estação do Rossio estava apinhada de gente. Alguns dos nossos amigos já lá se encontravam quando chegámos. Havia carregadores com carretas cheias de malas por toda a parte. Os meus pais não conseguiam esconder a tristeza. Alguns dias antes tínhamos lido um livro que narrava a triste história de uma rapariga que casara com um jovem forasteiro de terra distante. Nas cartas para a mãe ela tentava esconder a infelicidade e a vida dura que levava na terra do marido com histórias inventadas de sonhos e fantasias. Escrevia então: Mamã, isto é tão lindo que até as maçãs do nosso pomar são enormes e de cor muito, muito azul! Durante algum tempo a minha mãe acabava sempre as longas cartas que me escrevia com a mesma pergunta: Diz-me, filha, as maçãs do teu pomar são mesmo tão azuis?
A pouco e pouco o comboio começou a andar, deixando lentamente a plataforma, com todos a acenarem um último adeus de despedida. Não pude mais esconder as lágrimas e, mal entrámos no túnel do Rossio, sentei-me desfalecida, com uma grande angústia a apertar-me o coração e banhada em lágrimas. Acordei sobressaltada. O comboio tinha parado numa pequena estação. Olhei para fora; estávamos ainda em Espanha. A manhã já ia avançada e começava a ouvir Lica no cubículo adjacente, que era a casa de banho. Ouvia-se o ruído do chapinhar de água na bacia. A nossa vida, como marido e mulher, tinha apenas começado e à nossa frente abria-se agora um vasto mundo cheio de sonhos. Nos últimos anos, Lica andara cada vez mais inquieto em relação aos problemas da Índia. Alguns meses antes tinha sofrido um grande choque: Gandhi fora assassinado. Desde então, o impulso e grande desejo de voltar para o seu país aumentava de dia para dia. Após a independência da Índia sentiu se desiludido com a situação de Goa. O primeiro congresso para a independência da Índia tinha se reunido em Belgão, perto de Goa, mas todo o subcontinente estava agora livre, excepto Goa e uns pequenos territórios que a França ainda segurava. Depois do fim do chamado British Raj, Salazar mudou, de uma penada, o nome de colónias para províncias ultramarinas, transformando, assim, qualquer futuro problema internacional em assunto interno. A partir dessa altura, Goa passou a ser considerada parte integrante de Portugal, com o lema Aqui também é Portugal. Este gesto infantil, fez-me lembrar a história do Sadhu (santo indiano), que, para fazer parar o avanço do exército inimigo, mandou estender, atravessado no caminho, o dhoti amarelo-açafrão dos Sadhus para barrar a passagem. Estava convencido de que ninguém teria a coragem de pisar aquele pano sagrado…» In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.

Cortesia de E. Tágide/JDACT