sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Sombra do Templário. Século XIII. Núria Masot. «A urgência do doente em descer a terra fizera-o pensar que houvesse alguém à espera dele, mas não encontrou ninguém, a não ser a frenética actividade que a chegada de um navio originava. Desconhecia o tipo de veneno que lhe tinham ministrado…»

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Barcelona
«(…) Sim, ele e Guils em competição, a fim de demonstrarem a resistência de ambos ao vinho, copo atrás de copo, ele sereno e sem perder a compostura, bebendo sem vacilar, e Guils, feito um farrapo ao terceiro copo, cambaleante e balbuciante... sim, de facto ia ser uma bela história. Chegados a terra, a operação de desembarque de Guils voltou a ser árdua. Não recuperara os sentidos e a sua alta estatura requereu a ajuda de todos quantos puderam correr a auxilia-lo, além dos passageiros que se acotovelavam na tarefa. Todos menos frei Berenguer que, sem esperar pelo jovem ajudante, saltou da embarcação sem se deter nem um instante. Bernard Guils, estendido na praia com Abraão a seu lado, era a imagem do desamparo. O velho judeu contemplou o moribundo com compaixão e simultaneamente com preocupação. Olhava em redor procurando algum companheiro de Guils, alguém que estivesse à sua espera. A urgência do doente em descer a terra fizera-o pensar que houvesse alguém à espera dele, mas não encontrou ninguém, a não ser a frenética actividade que a chegada de um navio originava.
Bem, pensou, há que levar o homem para local conveniente, talvez ainda haja alguma esperança de vida. Desconhecia o tipo de veneno que lhe tinham ministrado, mas podia tentar encontrar um antídoto, um remédio qualquer que devolvesse aquele homem à vida. Todavia, não tinha grandes ilusões, aquela poção há dias que atacava o organismo de Guils, enquanto permanecia deitado na enxerga, sem pedir ajuda, morrendo na mais completa solidão. Desde o princípio que Abraão simpatizava com Guils, agradava-lhe mesmo sem o conhecer, tinha a certeza de que era um homem bom e não pensava abandoná-lo. Mas necessitava de ajuda urgente para o levar para casa e era evidente que não o podia fazer sozinho. Olhou, procurando um rosto amigo, um rosto que fosse capaz de sentir piedade perante aquela situação e viu que Ricard Camposines, o comerciante, se aproximava deles.
 - Não devia ter-se embriagado logo no último dia, disse um tanto desiludido. - Não julguei que fosse homem desse tipo, não o vi beber em toda a travessia. Escolheu uma má altura. Abraão observou-o atentamente. Não tinha a certeza de que Camposines abandonasse a vigilância da carga para o ajudar e muito menos no porto, onde o controlo das mercadorias tinha de ser minucioso. Pensou uns segundos, mas a urgência da situação não lhe permitia muito tempo em conjecturas. - Ora,Camposines, começou a dizer, cauteloso, este homem não se acha nesta situação por causa da bebida. Está doente e precisa de tratamento. - Doente? Parecia mais forte que um penedo... Tendes a certeza? – Absoluta, redarguiu Abraão. - A doença é real. Foi envenenado e é urgente que consiga levá-lo para minha casa a ver se anda é tempo de encontrar uma solução. Não há tempo a perder, de contrário o homem morre. Preciso de ajuda, Camposines.
O comerciante esboçou uma careta de espanto, as palavras do velho judeu haviam-no impressionado. Envenenado, na linguagem dele era sinónimo de conjuras e conspirações e ele não queria problemas, todo aquele escândalo podia prejudicar-lhe o negócio, precisamente no momento em que tinha conseguido chegar. Porém, simpatizava tanto com Guils como com Abraão e comovia-o a compaixão que o judeu demonstrava, a sua generosidade. Sentia-se mesquinho e envergonhado. Contemplou o quadro que tinha diante dos olhos, um mercenário alto e forte, estendido na praia, inconsciente e frágil, e um velho judeu com uma força interior que lhe brilhava nos olhos. Sentiu-se miserável, carecido da coragem que fazia parte daqueles dois homens, tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidos.
 - Auxiliar-vos-ei, Abraão, se bem que o não possa fazer pessoalmente. Isso ser-me-ia impossível, mas vou encarregar um dos meus moços de fretes de vos ajudar a levar Guils onde indicardes. Espero que isso vos sirva de ajuda. - Será esse o melhor socorro que me podereis prestar, amigo Camposines. Espero que o tempo seja generoso comigo para poder retribuir-vos este favor. Sou médico e estou à vossa disposição para o que necessitardes. Esta declaração ficou gravada na mente de Ricard Camposines: médico, tinha dito que era médico e sabia que os médicos judeus gozavam de merecida fama naquela profissão. Não era em vão que reis e nobres os reclamavam. Era um acaso extraordinário, uma lição que tinha de aprender, fizera com aquele homem uma longa travessia, quase sem lhe ter dirigido a palavra, amedrontado, Deus escrevia torto e os homens obstinavam-se em pôr-lhe as linhas direitas. Correu em busca do capataz que dirigia a operação de descarga, controlando cada fardo que descia da embarcação, tão picuinhas como o patrão. Ordenou-lhe que procurasse um dos moços de fretes para um trabalho especial que seria convenientemente remunerado». In Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.

Cortesia de Sicidea/JDACT