domingo, 24 de novembro de 2013

A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária. Álvaro Manuel Machado. «A raça portuguesa foi lentamente e surdamente corrompida pelo antigo despotismo monárquico, pela soberba intrépida e bulhenta dos fidalgos, pelo ouro das conquistas e principalmente pelo monasticismo. Fizemo-nos ociosos, vaidosos, pusilânimes, supersticiosos e fanáticos»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ramalho Ortigão ou o Republicanismo pequeno-burguês
«(…) Há um outro, talvez afinal ainda mais importante, que é o da consciência de degradação da vida política portuguesa por volta de 1870. Prova-o, entre outros, este texto de 1874, extraído de As Farpas, texto em que Ramalho se refere sobretudo à falta de representatividade do Parlamento:

A representação nacional há muito que está sendo em Portugal uma farsa ridícula para a ciência e uma vergonha pública para o patriotismo. A câmara é de uma ignorância enciclopédica. Erra e insulta, e não se esclarece nem se desafronta, o que prova que não tem ciência e que parece não ter carácter. (...) Faltam à câmara as ideias políticas e faltam-lhe os princípios morais. Daqui resulta uma perturbação insanável, um mal sem cura. É a corrupção, é a gangrena, é a paralisação senil afectando o jogo de todo o maquinismo constitucional. Temos o sossego interior e temos a paz no estrangeiro; gozamos da liberdade política e da liberdade individual; e, não obstante, no país todo há um surdo descontentamento geral. (...) Em Portugal, os partidos acabaram há muitos anos. Não existem divergências de opinião sobre qualquer princípio capital que interesse o país inteiro. Como o interesse do país desapareceu, a urna fica entregue ao arbítrio da autoridade, e os círculos eleitorais convertem-se em burgos podres. Os regeneradores com os cabos de polícia elegem a maioria, os grandes proprietários com os seus caseiros e os seus amigos votam nas oposições. A vontade popular é muda e passiva, o que quer dizer que as fontes íntimas da vida nacional estão obstruídas ou secas. (...) O país inteiro vive numa miséria baixa, numa pobreza degradante, sem a altivez, sem o brio dos pobres valentes, que nunca dobram a espinha nem estendem a mão.

Na altura em que escreveu este texto, já Ramalho deixara o Porto e, em Lisboa, entrara para o grupo do Cenáculo, ao qual pertenciam também Eça de Queirós, Oliveira Martins, Antero de Quental, Guilherme Azevedo, Guerra Junqueiro, Jaime Batalha Reis. Este grupo, de que o principal mentor era Antero de Quental, não discute só literatura, mas propõe-se também organizar um plano de acção ideológica, plano de que resultaram as Conferências do Casino, em que se atacam as instituições da época.
A colaboração entre Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, que data do período do Cenáculo, e que se concretiza com a publicação no Diário de Notícias (24 de Julho a 27 de Setembro de 1870) de um escrito singular, O mistério da estrada de Sintra, e do primeiro número de As Farpas (Maio de 1871), interrompe-se com a partida de Eça (9 de Novembro de 1872) para Cuba, onde vai exercer o cargo de cônsul.
É mais precisamente na segunda fase de As Farpas que se revela o republicanismo pequeno-burguês de Ramalho, tornado um discípulo do futuro presidente da Primeira República portuguesa, Teófilo Braga, e do seu positivismo comtiano extremamente limitado. Ramalho é então, mais do que nunca, um propagandista da ideologia republicana e permaneceu como tal, ainda que na última fase da sua vida se volte para a monarquia mais tradicionalista. Este republicanismo pequeno-burguês manifesta-se, sobretudo, através do seu anti-clericalismo, de que nos dá exemplos abundantes nas Farpas:

A raça portuguesa foi lentamente e surdamente corrompida pelo antigo despotismo monárquico, pela soberba intrépida e bulhenta dos fidalgos, pelo ouro das conquistas e principalmente pelo monasticismo. Fizemo-nos ociosos, vaidosos, pusilânimes, supersticiosos e fanáticos. A religião, mais clerical que divina, penetrando-nos completamente, dando-nos uma lei infalível para a consciência, proibindo-nos de pensar (...) lançou-nos na inércia passiva a respeito do problema dos nossos destinos mais elevados. Ensinaram-nos a explicar a culpa pela tentação do demónio e a considerarmo-nos inocentes pela absolvição dos confessores. Com semelhante teoria, o dever e a responsabilidade desaparecem. A consciência cai na imobilidade.

Por vezes, a este anti-clericalismo vem juntar-se um outro tema característico dos ataques da propaganda republicanista ao regime monárquico decadente. Esse tema é o do sistema colonial português. Ramalho põe em relevo, sobretudo, a sua pouca eficácia como sistema de civilização. Veja-se, por exemplo, este texto das Farpas que data de Maio de 1879 e que aborda a questão africana:

Desde o século XVI até hoje os padres têm sido o único instrumento da civilização empregado pelo governo português no regime colonial. No século XV as nossas relações comerciais com a África achavam-se organizadas. (...) Depois de João II a decadência da África principia pelo desvio das atenções para a Ásia e para o Brasil e pelas guerras dos holandeses, e continua até aos tempos modernos mantida progressivamente pelo tráfico ruinoso e dissolvente da escravatura. (...) Na trajectória do nosso destino houve uma solução de continuidade entre o século XVI e a idade moderna. O despotismo monárquico e o despotismo teológico despedaçaram a cadeia das nossas tradições. O regime liberal, por falta de critério científico, não soube ainda ligar o fio da nossa actividade presente ao forte impulso da antiga civilização, violentamente truncada durante mais de três séculos pelos agentes mais perturbadores do movimento progressivo de uma sociedade.

A este anti-clericalismo e a este ataque, de uma maneira geral, ao regime monárquico, acrescentam-se um moralismo e um didactismo de origem sociológica (sem, no entanto, terem nada a ver com o socialismo utópico de Antero) que reforçam, em várias passagens das Farpas, a ideia de republicanismo pequeno-burguês». In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT