sábado, 23 de novembro de 2013

A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária. Álvaro Manuel Machado. «... soltando as ideias como um enxame luminoso e alado, preenche o mundo com uma claridade nova, e a esse fiat lux dissipam-se para sempre as trevas da razão encarcerada na dialéctica sacerdotal»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vidas e Obras
«(…) Analisámos já, embora sumariamente, os elementos históricos, sociais e políticos que marcaram a Geração de 70 desde a sua origem. Vejamos agora a formação e a evolução de cada um dos seus principais componentes e das suas respectivas obras literárias. Para isso, adoptaremos um critério meramente cronológico, começando, portanto, pelo mais velho dos principais componentes da Geração de 70 até chegar ao mais novo. A vida e a obra de outros elementos culturalmente menos importantes, menos decisivos, da Geração de 70 serão resumidas numa breve anotação final.

Ramalho Ortigão ou o Republicanismo pequeno-burguês
Do fundo tenebroso da Idade Média tinham saído os três factos fundamentais da civilização moderna, a bússola, a imprensa e a pólvora. Esta citação de Ramalho Ortigão, que abre um prefácio da edição de Os Lusíadas feita pelo Gabinete Português de Leitura, do Rio de Janeiro, para comemorar o terceiro centenário de Camões, texto que data de 19 de Março de 1880, pode, de certo modo, resumir toda a atitude cultural deste componente da Geração de 70. Ou seja: a sua condenação de tudo o que é irracional ou supra-racional, tudo o que, segundo Ramalho, vem do fundo tenebroso da Idade Média, e a sua sobrevalorização da civilização moderna, que significa para ele tudo o que é racional. Note-se ainda, neste texto pouco conhecido, o elogio que Ramalho faz da Imprensa, a qual:

... soltando as ideias como um enxame luminoso e alado, preenche o mundo com uma claridade nova, e a esse fiat lux dissipam-se para sempre as trevas da razão encarcerada na dialéctica sacerdotal.

O racionalismo para Ramalho seria, portanto, antes de mais, manifestado através da actividade da Imprensa e teria como consequência o fim da dialéctica sacerdotal. O racionalismo fora a grande vitória da Renascença: Da plenitude gloriosa que vem ao espírito humano dessa tríplice conquista, procede esta enorme festa, a Renascença. Nestes breves excertos; estão já patentes as limitações culturais de Ramalho Ortigão: uma visão histórica extremamente superficial, baseada em preconceitos de um racionalismo rígido. Opõe totalmente Idade Média e Renascença, resumindo a primeira ao obscurantismo sacerdotal, como se a Idade Média não tivesse a sua luminosidade intelectual própria, não viciada pela Escolástica, e como se a Renascença não fosse feita de tanta sombra irracionalista! Mas o mais importante destas citações, confirmado por tantos textos anteriores e posteriores de Ramalho Ortigão, é, sem dúvida, o elogio incondicional da Imprensa. De facto, para José Duarte Ramalho Ortigão (1836-1915), a missão histórica da palavra impressa e, mais exactamente, da palavra socialmente mais eficaz, ou seja, a palavra jornalística, foi sempre determinante.
Como diz António José Saraiva, Ramalho Ortigão formou-se na escola do folhetim literário. Nascido no Porto, aí começou a sua carreira de jornalista, no Jornal do Porto. Camilo e o Porto, naquilo que um e outro tinham de provinciano, de relapso a todas as formas de vanguarda cultural e estética, influenciaram-no decisivamente. Prova-o, por exemplo, o texto que Ramalho consagrou a Camilo e em que descreve o Porto da sua infância e da sua adolescência com paixão:

Em 1850, o Porto parecia-se mais com o estreito e cavo burgo medieval que Garret descreve no Arco de Sant’Ana, do que com a cidade comercial, civilizadamente cosmopolita, incaracterística e banal, que hoje é.

Neste texto, Ramalho manifesta também o seu sentido agudo do descritivo minucioso e o seu gosto do típico:

Algumas ruas tinham o aspecto mais interessantemente arqueológico ou mais vivamente pitoresco. A antiga Banharia era ainda a esse tempo quase exclusivamente habitada por latoeiros. Tinha toda ela um tom doirado produzido pela refracção de luz nas bacias, nos tachos, nos candeeiros de três bicos, em cobre polido, pendurados às portas: e o permanente martelar dos arames aviventava-a com o mesmo ruído laborioso e alegre do tempo em que a Aninhas morava ali perto, ao bendito arco da Senhora Sant’Ana. (...) Durante o Verão, o folguedo predilecto das famílias abonadas eram as merendas e os jantares pelo rio acima, a Quebrantões, ao Freixo, à Pedra Salgada, à quinta da China. (...) A família toda, o marido, de calças de ganga e chapéu de sol, a mulher, os filhos, a criada com roupinhas minhotas, e os dois marçanos, em chinelas de bezerro compradas nas Congostas, camisa de linho caseiro, niza de briche e chapéu braguês de copa alta e aguda, tomavam metodicamente assento à ré, sob o tolde branco, rusticamente armado em varas de pinho, como um parreiral suspenso.

Mas o Porto e o sentido do pitoresco não foram os únicos elementos determinantes da formação de Ramalho». In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT