sábado, 19 de outubro de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «A primeira vez que a jovem Leonor focalizou este mundo invisível apavorou-se. Espíritos em multidão boiavam nesta cinza sulfurosa, contorcendo-se cegamente como medusas transparentes que se tocavam e repeliam umas às outras»

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O Comércio do Invisível
«(…) Daqui tirou a pequena Leonor Teles uma teoria geral da vida, que ia muito para além daqueles agentes que o cónego de Braga lhe deixara como sementes. Primeira conclusão: a existência que nós podíamos ver e conhecer com os olhos do corpo era uma parcela ínfima da vida. Havia o mundo visível, constituído por tudo aquilo que era perceptível pelos sentidos, pedras, plantas, animais e homens, e havia o mundo invisível, num plano subtil e imaterial, que não era perceptível aos sentidos físicos. Não se via; não se cheirava; não se tocava; não se ouvia; não se degustava. E todavia estava lá, com cores, odores e sons. Bastava activar um outro sentido, de natureza interior, para os perceber. A partir desse instante os mundos imperceptíveis ganhavam uma realidade idêntica à da matéria. As entidades desses mundos paralelos, para serem compreendidas na sua essência profunda, podiam ser comparadas aos eventos dum sonho. Também neste tudo era subtil e imaterial, apesar da realidade e da impressão de verdade com que se apresentava. Segunda conclusão: os mundos invisíveis e o visível tinham uma ordenação e uma continuidade entre si. Possível lhe foi organizar em grupos os seres existentes, independentemente do plano de manifestação.
Antes de todos estavam os seres visíveis, os animais, as plantas, as pedras e os homens. Depois vinham os seres que gravitavam em torno destes e só deles se diferenciavam por não serem visíveis aos olhos corporais. Eram como emanações psíquicas dos corpos materiais. Por um lado, viviam na dependência dos seres visíveis, e por outro tinham uma liberdade de actuação própria. Existiam numa esfera intermédia, muito próxima porém da corporeidade. Por isso, em certas circunstâncias, sobretudo de isolamento e escuridão, os homens e as mulheres tinham o pressentimento da sua existência, quando não, o sobressalto terrível da sua visão. Estavam nessa categoria fadas, elfos, duendes e outros minúsculos espíritos de plantas e pedras. E ainda monstros e orcos, que eram emanações incorpóreas de animais ferozes, e fantasmas, que eram as exalações espirituais dos homens e das mulheres que morriam. Uma minoria muito pequena destas exalações libertava-se sem deixar vestígio para o mundo angélico, enquanto a larga maioria delas ficava presa nesta esfera intermédia, mesmo por cima da cabeça dos mortais, à espera de renascer num outro corpo ou tão-só de vogar para a eternidade nestas ondas invisíveis, sem outra função que gemer e gritar a sua dolorosa ignorância. Flutuavam estes seres numa assustadora névoa de cinza.
A primeira vez que a jovem Leonor focalizou este mundo invisível apavorou-se. Espíritos em multidão boiavam nesta cinza sulfurosa, contorcendo-se cegamente como medusas transparentes que se tocavam e repeliam umas às outras. De espaço a espaço, saíam do silêncio em que vogavam e gemiam friamente como assustadoras aves nocturnos. Leonor estava na capela do paço, ao lado da tia, preparando a celebração do dia seguinte, que era um domingo, e não conseguiu evitar uma perturbação profunda. Apesar do hábito que já havia naquele comércio com o invisível, a visão do oceano cinerário, tão próximo da matéria do nosso mundo, foi bastante assustadora para ela gritar. - Pardiez! Que é de pavor este reino. Recompôs-se de imediato, mas não mais soube como se livrar daquele horror de saber que mesmo por cima das pacatas existências dos terrenos, ainda antes da atmosfera onde se formavam os nimbos e os cúmulos, existia uma pavorosa região, densamente povoado de cinzas flutuantes, mortos que continuavam afinal vivos, sem esperança de se libertarem daquelas ondas sujas e limosas, a não ser pela encarnação num vaso de carne.
Depois destes seres invisíveis, que viviam todavia na dependência da matéria sensível, vinham os seres mais longínquos, anjos e demónios, que só intervinham no nosso mundo como emissários das duas grandes forças que governavam os vários planos do universo, a Luz e a Escuridão. Viviam noutras esferas e haviam sido criados muito antes dos seres terrenos e suas emanações invisíveis, numa altura em que a guerra entre Deus e o Diabo não havia ainda adquirido a luta aberta que depois, com a criação do homem e da mulher, tomou. Não pôde Leonor Teles deixar de ver que viver na Terra, depois da chegada de Lilit, passara a ser um crime, como se existir fosse tão-só matar e fazer sofrer. Para minorar a presença desse crime de viver deixou Leonor Teles de comer qualquer tipo de carne animal, de terra ou de água, até ao fim da vida, e se excepção houve nunca dela correu notícia. Em seu lugar, comia toda a comida de origem vegetal, crua ou cozinhada. E na sua cisma sobre este crime pensava muitas vezes que na Terra a vida só seria reconduzida à essência gloriosa do seu princípio, ao momento primevo da criação, quando os seres terrenos não mais tomassem do que ar por alimento. O mundo vegetal era o que menos se afastara da dimensão perfeita do Paraíso inicial, mantendo-se próximo daquilo que fora no tempo anterior à Queda. Admirava pois o reino vegetal como aquele que melhor havia resistido à chegada do princípio invertido à criação terrena. E no ar puro, rarefeito, carregado de frescura e benevolência, via ela uma viração prodigiosa, que fora capaz de atravessar o infinito deserto que separava hoje o mundo dos homens do mundo primeiro, anterior à corrupção da carne. Essa aragem imponderável continuava a ter em si o bastante para tornar imortal o corpo humano». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT