sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Frei Tomás estremeceu. Isaac estava exaltado e tornava inútil qualquer comentário. Zacuto aligeirou: - Escolhemos nós o bom nome de Coelho. Que sirva a nossa capacidade de reprodução, viva e fértil como a dos láparos»

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«(…) Às palavras de Zacuto dava Isaac as suas achegas, inflamando-se, subindo o tom de voz, enrubescendo de cóleras várias: - Havia quem nos quisesse manter por cá, pois nossos ofícios são muito destros, principalmente no fazer das armas como eu próprio, ou nas artes da cura, como meu irmão, do que poderá seguir-se muito dano se abalarmos... - Mas o debate nada valeu. O rei lançou um decreto de expulsão de todos os hebreus, exceptuando os que quisessem receber a água do baptismo. - E então? - espicaçou frei Tomás, em expectativa. - Os que saíssem poderiam levar seus bens e o monarca comprometeu-se a ceder-nos navios em três portos do reino, deixando-nos livres de partir...
... Não; não foi assim! Num domingo de Páscoa ordenou que nos tirassem os filhos até à idade dos catorze anos, a fim de serem educados, a expensas da coroa, em fé cristã... - Só não aconteceu pior porque, avisados, escondemos muitas das crianças, e muito cristão nos ajudou. Andamos para aqui ainda meio escondidos... - … Quanto a embarques, não se fizeram... - ... El-Rei mandou reunir-nos na capital, sendo ali o único posto, e criou mil obstáculos... - ... Aglomeraram-se mais de vinte mil pessoas, enquanto lhes pilhavam os bens (muitos, felizmente, conseguimos ocultá-los...). - - Ficámos como rebanho perdido no paço de estaus, na Ribeira, aos magotes sem eira nem beira... - … Depois chegaram uns da Igreja Católica e outros de El-Rei e disseram-nos que o nosso barco já partira e que ou éramos baptizados ou feitos escravos.
 - Sem escolha declarada, os da Igreja atiraram-nos dessa vossa água dita benta que pretende molhar as almas e secá-las nos modos que não professam... - ... E cá estamos, cristãos como se tal nascêssemos... Zacuto abriu-se num sorriso: - É claro, bom amigo Tomás, que a vossa água benta e santa lava a memória em profundidade. Já nenhum de nós se lembra do Livro de Jacob, nem do Eclesiastes, nem da proximidade do Deus vivo. Esquecemos, por magia de banho cristão, que o temor de Jeová é o começo da sabedoria. Ignoramos, de repente, os ensinamentos de Ezequiel e do segundo Isaías...
Aqui estão os quatro rios do Éden e da vida das civilizações humanas, nas quatro formas; saem de uma única e só fonte ternária, que é o olho da divindade; é o som da harmonia das esferas figurando o olho da razão eterna resplandecendo o seu esplendor no círculo das três vezes Santa Trindade. Ao centro a Elipse da vida que envia a Elipse das formas da vida: há duas Elipses na cruz da vida espiritual e duas Elipses na cruz da vida natural. O centro do Éden é a fonte única do princípio que projecta todas as formas da Natureza. - Que não se esqueça - gritou Isaac - que mesmo Jerusalém esteve sob os domínios gregos, que sobre o altar dos holocaustos do templo foi erguido um altar pagão, a abominação assoladora como diz Daniel, e o próprio templo foi consagrado ao Zeus olímpico e que os que resistiram foram massacrados, as muralhas demolidas, e na cidade de David ficou instalada uma guarnição síria. Começou então uma perseguição cruel, mas não foi nada disso que deteve o judaísmo.
Frei Tomás estremeceu. Isaac estava exaltado e tornava inútil qualquer comentário. Zacuto aligeirou: - Escolhemos nós o bom nome de Coelho. Que sirva a nossa capacidade de reprodução, viva e fértil como a dos láparos, para encher de mais judeus este mundo perdido... A conversa, que chegara a provocar tensão e lágrimas, dava com este final motivo para rir aos dois judeus. Frei Tomás acabou por juntar-se-lhes na chacota. – Bom, quer então dizer que nenhum de vós partiu? Lá isso não. Sete ou oito dos nossos, os de mais alta posição, um deles era matemático e astrólogo do rei, outro o mais sábio físico deste reino, bateram o pé e lá embarcaram... - E nós cá ficámos, a representar com a dignidade possível a peçonha judaica. - E agora, que planos tendes? - Que planos? - responderam à uma os dois irmãos. E, como se combinados, ainda em coro – Fazer a vida negra a esse chifrudo que é El-Rei!» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT