segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O Homem sem Qualidades. Robert Musil. «A dama e o seu companheiro haviam-se aproximado também e, por cima das cabeças e das costas inclinadas, contemplavam o homem estendido. Então, pouco à-vontade recuaram um passo (só?...)»

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Onde, coisa estranha, nada acontece
«(…) São perguntas como esta que fazem muitas vezes a si próprios, na rua, os espíritos curiosos. De resto, eles resolvem-se de maneira também curiosa, isto é, esquecemo-las imediatamente, desde que, no espaço de cinquenta metros, não consigamos recordar-nos onde é que já vimos aquelas caras. As duas pessoas a que me refiro pararam de súbito ao avistarem um aglomerado de gente. Momentos antes qualquer coisa se desviara, num movimento oblíquo; qualquer coisa dera meia volta em derrapagem: um enorme camião metera travões a fundo, e por isso encontrava-se agora parado, com uma das rodas sobre o passeio. Imediatamente, como abelhas em volta da entrada do cortiço, as pessoas haviam-se aglomerado em redor de um pequeno espaço livre. Via-se o motorista, a descer do engenho, branco como um papel, a explicar o acidente com gestos desastrados. As pessoas que se haviam aproximado fitaram-no primeiro, depois mergulharam a vista cautelosamente nas profundezas da cova em que um homem, com aparência de morto, tinha sido deitado à beira do passeio. Segundo a opinião geral o desastre fora causado pela sua distracção. Uma após outra, as pessoas ajoelhavam-se junto dele, no desejo de fazerem qualquer coisa; desapertaram-lhe o casaco, tornavam a apertá-lo, tentavam sentar o ferido, deitavam-no de novo; na verdade, apenas pretendiam ocupar o tempo enquanto a polícia não vinha prestar-lhe os seus socorros autorizados e competentes.
A dama e o seu companheiro haviam-se aproximado também e, por cima das cabeças e das costas inclinadas, contemplavam o homem estendido. Então, pouco à-vontade recuaram um passo. A dama sentiu na boca do estômago um mal-estar que ela tomou por piedade, era uma espécie de irresolução paralisante. Após ficar calado um momento, o cavalheiro declaro-lhe: - os carros pesados que utilizamos no nosso país têm um campo de travagem demasiado extenso. A dama, sentindo-se consolada com esta frase, dirigiu-lhe um olhar agradecido. Sem dúvida já ouvira o termo uma vez ou duas, mas ignorava o que fosse o campo de travagem, e nem isso a interessava; bastava-lhe que aquele horrível incidente pudesse ser integrado dentro de uma ordem qualquer e transformar-se num problema técnico que de algum modo lhe pudesse dizer respeito. De resto ouvia-se já o alarme estridente da ambulância e a rapidez da sua intervenção tranquilizou todos os que se encontravam à espera. Estas instituições sociais são admiráveis! Ergueram o sinistrado para o estenderem na maca e empurraram esta para dentro do carro. Alguns homens envergando uma espécie de farda encarregaram-se dele e o interior da ambulância, pelo que se podia divisar, tinha um ar tão limpo e ordenado como uma enfermeira. Lá partiram e todos ficaram com a impressão, de resto justificada, que acabava de ter lugar um acontecimento legal e regulamentar». In Robert Musil, Der Mann Ohne Eigenschaften, O Homem sem Qualidades, tradução de Mário Braga, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 1952.

Cortesia de LBrasil/JDACT