quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Notas sobre Jornalismo e História em Eça de Queirós. Adriana Mello Guimarães. «O jornalismo ensina, professa, alumia sobretudo; é ele o grande constituidor do futuro [...] A história leal, verdadeira e elevada, pela filosofia que encerra, pelos métodos políticos que esclarece…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Resumo: Breves anotações sobre a relação entre jornalismo e história na obra de Eça de Queirós como jornalista.

Era aos mass media que começava a pertencer o monopólio da história. A partir de agora, pertence-lhes. Nas nossas sociedades contemporâneas é através deles, e só através deles, que o acontecimento nos toca e não pode evitar-nos.

«A questão do conhecimento histórico na cultura de um povo, com seus desdobramentos na vida individual, tornou-se um tema recorrente na obra de importantes pensadores a partir do século XIX. No actual mundo globalizado é impossível darmos conta da existência humana em bases sustentáveis sem considerá-la em sua condicionalidade histórica. Se tomarmos como premissa a moderna compreensão de que toda a actividade humana é parte de um projecto, tudo pressupõe factores históricos: a actividade económica, política, social, artística, científica, e até mesmo a actividade filosófica. Mas a actividade jornalística aparentemente tem uma relação especial com o conhecimento histórico: o jornalismo, a partir do final do século XIX, passa a reflectir historicamente a vida dos povos em seus mais diferentes sectores de actividade. Mas qual a relação entre a história e o jornalismo? Como é que a história tem visto os media na sua actividade de promover a interacção do indivíduo com os acontecimentos da vida em sociedade?
Ora, no nosso mundo contemporâneo, hipermoderno, já se considera o jornalista como um historiador do tempo presente. De facto, existe uma espécie de partilha entre esses dois lugares de produção do saber, pois se o jornalismo conta histórias do acontecimento presente, o historiador também não cria factos, mas os descortina, fazendo-os sair da sua invisibilidade. Entre os pensadores oitocentistas que abordaram a problemática, e assinalando uma visão histórica da questão, destacamos o escritor-jornalista Eça de Queirós que, no nosso entender, nas suas crónicas para a imprensa, sentiu alguma familiaridade entre o jornalismo e a história. Afinal, importa observar que Eça viveu num mundo sob o forte impacto do surgimento das ciências do espírito, por oposição às ciências da natureza, mundo esse em que se destaca a influência do pensamento de Hegel, nomeadamente no seu estudo A razão na história, para quem a verdade está na sua história, e esta história encontra-se em transformação perpétua. Tal indicação nos parece clara, pois se, no primeiro número de O Distrito de Évora, Eça de Queirós procura um conceito de jornalismo, no segundo número ele subordina seu pensamento ao título As ciências históricas. Em Eça, as atitudes do jornalista e do historiador são partes de uma mesma intenção informativa. Ambos têm uma grande preocupação com a procura da verdade.
Para ele, as ciências históricas são a base das ciências sociais. Ou seja, para o escritor, como acaba de se tornar patente, não se pode compreender nada da realidade, não se pode conhecer fora do âmbito da história, porque tudo o que é real e existe tem história, é histórico. De acordo com esse viés, tanto o saber quanto a divulgação do saber estão subordinados à historicidade dos factos. Seria, assim, do ponto de vista da história, que o jornalista adquire uma visão global dos acontecimentos, e procura, como numa investigação, aqueles factos que são considerados os mais importantes na ordem causal. Sem o sentido da historicidade dos factos, faltaria ao jornalista esta visão global do tempo, e ele se perderia na superficialidade e no impressionismo dos factos ditos interessantes:
  • O jornalismo ensina, professa, alumia sobretudo; é ele o grande constituidor do futuro [...] A história leal, verdadeira e elevada, pela filosofia que encerra, pelos métodos políticos que esclarece, pelas tradições que destrói e que consagra, pelas individualidades cujas influências estuda e penetra, esclarece e funda a política do futuro.
Problemáticas oitocentistas que ainda hoje permanecem actuais. Além desta interdisciplinaridade, as fronteiras dessas duas áreas também se cruzam na narrativa. Afinal, nos dois campos temos também um narrador, o historiador e o jornalista, que têm empreitadas narrativas a cumprir. Tanto o jornalista como o historiador devem reunir os dados, seleccionar, constituir conexões e intersecções entre eles, elaborar um enredo, apresentar soluções para decifrar uma trama e utilizar estratégias de retórica para convencer o leitor, com vistas a oferecer uma versão o mais possível aproximada do real acontecido. Enfim, ambos trabalham sobre os factos sociais (acontecimentos) e organizam uma memória colectiva. Sobre essa sobreposição de papéis, Cádima vai mais longe e alerta:
  • No passado, o poder tinha a palavra. Hoje, a História é o discurso, e a palavra tem o poder. No limite poder-se-ia dizer que o que resta de histórico na História é o sujeito da enunciação, o historiador, e o discurso por ele produzido. Mas se há um século atrás cabia aos historiadores a legitimação do passado, hoje é o jornalista e o campo dos media que ocupam o lugar do historiador.
Cabe, ainda, destacar o seguinte: é verdade que o objecto de estudo do historiador está no passado, mas o historiador vive no presente e esse presente é construído pelos jornalistas. Hoje, não só se reconhece essa interdisciplinaridade como também se assume que divergências entre as duas disciplinas não fazem sentido:
  • Seja qual for o ponto de partida, torna-se necessário que aqueles que se preocupam com a história e a comunicação e a cultura, tema que cada dia ganha mais adeptos, levem com mais seriedade e atenção a história, e os historiadores, seja qual for o tema ou período que estudem, considerem de maneira mais cuidadosa em seus estudos a comunicação.
Enfim, para enfrentar esta a aproximação entre estas formas de conhecimento ou discursos sobre o mundo, é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas epistemológicas que diluam fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade jornalismo / história ou actualidade / passado. Podemos afirmar que as duas instâncias de conhecimento, apesar de suas diferenças, realizam abordagens e interpretações que, quando entram em sintonia, se enriquecem na compreensão dos factos e nas repercussões destes na sociedade. Em suma, entendemos que estas questões revelam a riqueza de uma antiga questão. No entanto, estas preocupações podem proporcionar uma abertura dos campos de pesquisa para a utilização de novas fontes e objectos, e enriquecer o campo jornalístico». In Adriana Mello Guimarães, Notas sobre Jornalismo e História em Eça de Queirós, Escola Superior de Educação de Portalegre, Universidade de Évora, Média e Comunicação. Aprender, 2012.

Cortesia da ESEP/JDACT