domingo, 20 de outubro de 2013

Memórias do Tempo de Camilo. A. A. Alberto Pimentel. «… era Camilo, que fundou a novela de costumes, a “Comedia humana” dos portugueses, como Balzac o fizera em relação ao seu país; era Rebelo da Silva, esmaltador ‘hors ligne’, tão variegado como Teófilo Gautier…»

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Um suposto enigma
«(…) Ele dizia coisas lindas e sábias com a sua vozinha de velha rabujenta, num gesto frequente de compor o cabelo e o colarinho. Era um prazer, uma delícia ouvi-lo e aprendia-se sempre lendo-o ou escutando-o. A noite, Latino saía de carruagem com as irmãs e o irmão. Os dois apeavam-se á porta da livraria Silva, e as senhoras ficavam dentro do trem, onde esperavam ás vezes longas horas. Porque em estando a conversar naquela livraria ou em qualquer outro logar em que se lhe deparassem amigos, Latino distraía-se, animava-se, esquecia-se de si próprio, dos seus nervos doentes, e não dava tento das horas que iam passando. Á livraria Pereira, na rua Augusta, concorriam quase todas as noites Andrade Corvo, Inocêncio Francisco Silva, e dois homens a quem não faltava ilustração para serem apreciados entre escritores: o juiz José Maria Borges e o tabelião Barradas.
Não pareça ao leitor que já deixei quebrado o fio da narrativa. Deve lembrar-se de que estou falando, aliás bem a propósito de A. A, e da sua época, de uma notável geração de escritores portugueses, que na minha mocidade encontrei ainda florescente e que vi extinguir-se dia a dia, homem a homem. Tem-se dito que era o tempo do elogio mutuo? Por que? Porque assentava na verdade e na justiça o que algum escritor dizia de outro pelo menos em público?

NOTA: Vem a propósito citar o testemunho autorizado de um homem ilustre daquela época, testemunho que eu só recentemente encontrei no 2.° vol. das Cartas de Paris, por Teixeira de Vasconcelos. Alguém disse que os redactores da Revista Contemporânea tinham fundado n'ella a Companhia do Elogio Mutuo. Não é verdade, ao menos na parte biographica. Ninguém paga alli as suas dividas, mas, se as pagasse, antes em moeda de louvor do que nos sujos cobres da mentira e da diffamação. Paris, 1862. Outro testemunho, também autorizado e coevo, já eu conhecia: era o de Camilo numa carta a Ernesto Bíester (Esboços de apreciações litterarias).

Ainda teremos ocasião de mostrar, nestas mesmas páginas, que o louvor e a censura eram independentes e livres. Chamar a isso elogio mutuo! Especialmente as censuras eram tão livres... Que chegavam a ser cruéis: Ernesto Bíester e Júlio César Machado foram duas vítimas dos censores. Pode lá acreditar-se que, em tempo algum, dez, vinte, duas dúzias de literatos fizessem confraria para elogiar-se uns aos outros e mantivessem o pacto, sem de vez em quando o atraiçoar? Quem o acreditasse não os conheceria. Hoje, hoje é que, vistos já de muito longe, os tempos, quase remotos, de 1860, nos chegam a parecer muito benignos na crítica literária e rescendentes a uma vaga essência de mutuo favor. Porque depois, eu o tenho visto e lastimado, veio outra raça de plumitivos e com ela o derrancado processo de recíproca difamação em publico e particular, sem verdade e sem justiça.
Naquele tempo, a estatura dos escritores atingia, quanto ao maior número pelo menos, uma alta craveira. Além do seu valor profissional, possuíam ardor combativo. Alguns deles vinham das lutas políticas liquidadas no campo de batalha com as armas na mão. E esse espírito guerreiro ainda durante uma temporada o vimos sobreviver-lhes, como nos dias mais limpidamente luminosos, vemos, depois do sol posto, demorar-se sobre o ocidente um clarão sanguíneo e áureo. A literatura, por sucessivas revivescências do espírito medieval, cuja atmosfera Alexandre Herculano, o Mestre, respirava apaixonadamente, era uma cavalaria de paladinos intelectuais, que, á sombra da sua bandeira, terçavam armas galhardamente. Assim tinha sido um século antes, na longa campanha encarniçada do Verdadeiro Méthodo, e já em meados do século XIX na azeda briga do Eu e o clero. Assim havia de ser ainda, saudoso ocaso duma grande época literária, na polémica sobre a conversação preambular do D. Jayme e, principalmente, na questão coimbrã. Mas relanceemos os olhos pelo florilégio dos notáveis escritores de 1860 (deixando para alguma referência especial os Parnasos regionais), e, excepcionalmente, lembremos aquele insigne Proteu a quem a morte levara apenas seis anos antes.
Aludimos a Garrett, que tinha evocado o cancioneiro popular e restaurado o nosso teatro; que tinha aveludado galantemente a poesia emotiva na maciez flexível de madrigais de salão e bordado sobre tradições nacionais o novo debuxo de modernos poemas. Os homens de letras que viviam em 1860 são dignos de memória perdurável. Era Herculano, que reconstruiu a história pátria e nacionalizou o romance histórico; era Castilho, que fez reflorir a língua de ouro de Sousa e Lucena e nela aclimou famosos autores estrangeiros desde Anacreonte e Ovidio até Molière e Méry; era Camilo, que fundou a novela de costumes, a Comedia humana dos portugueses, como Balzac o fizera em relação ao seu país; era Rebelo da Silva, esmaltador hors ligne, tão variegado como Teófilo Gautier; era Rodrigues Sampaio, um jornalista exímio no floreio da ironia e na perícia da réplica; era Inocêncio da Silva, continuador indefesso do abade Barbosa Machado na vasta empresa do nosso inventário bibliográfico; era Silva Túlio, carinhoso guia dos novos na lição das fontes clássicas e no manejo das expressões idiomáticas; era Andrade Corvo, um erudito como Latino e um dos melhores discípulos de Herculano como romancista; era Mendes Leal, poeta lírico de voos épicos e dramaturgo que, a partir do Pedro e dos Homens de mármore, humanizou o teatro na flagrância dos assuntos sociais; Bulhão Pato, hoje septuagenário (morreu em 24 de Agosto de 1912), que se nivelou na estrofe com Trueba e Campoamor; João de Lemos, cujo soberbo estro não envelhecerá jamais; Teixeira de Vasconcelos, o prosador de mais clara e concisa linguagem no jornal e no livro; José Estêvão, que iluminou a literatura política na tribuna parlamentar com relâmpagos de arrebatada eloquência; Lopes de Mendonça, polígrafo sanguíneo, menos subtil no folhetim que Júlio Machado, no folhetim que é a pedra de toque para conhecer-se a graça de uma língua, o génio de um povo, o sorriso de uma literatura». In Alberto Pimentel, Memórias do Tempo de Camilo, A. A., Companhia Portuguesa Editora, Magalhães e Moniz Editores, Porto, 1913.

Cortesia de M e Moniz/JDACT