quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A Revolução Portuguesa. O 5 de Outubro de 1910. Lisboa. Jorge D’Abreu. «A influência moral desprendida do acto revolucionário, já em precipitado desenrolar, ajudou muito a conquista da liberdade. A presença da artilharia no campo revoltoso, a imediata adesão do ‘Adamastor’ e do ‘S. Rafael’ ao movimento, o bombardeamento do paço…»


Cortesia de wikipedia

«De todos os relatos que vieram à tona da imprensa portuguesa sobre episódios do movimento que implantou a República no nosso país, conclui-se nitidamente esta coisa curiosa: raros foram os pontos do programa revolucionário que se cumpriram à risca. No entanto, o movimento triunfou. As longas horas de espectativa dolorosa, que uns passaram a desafiar a morte e outros a contas com a torturante ignorância da verdade, desfecharam na manhã de 5 de Outubro em delirante estralejar da vitória, alcançada simultaneamente pelo esforço heróico de meia dúzia de patriotas e a inacção de centenares de descrentes. O movimento triunfou apesar de tudo: da ausência, no momento supremo, de elementos de coordenação revolucionária, do desânimo que bem cedo invadiu quase a totalidade dos dirigentes da campanha, da falta sensível de armamento destinado aos carbonários e outros civis. Na madrugada de 4 de Outubro, à hora em que um troço de populares e de soldados arrastava pela Rotunda o entusiasmo dos primeiros momentos de combate bem sucedido, ainda numa casa dos lados da Sé duas criaturas devotadíssimas fabricavam bombas que um emissário da Revolução dai a pouco devia ir buscar. Mas o emissário não apareceu e um dos fabricantes saiu à rua a inteirar-se da situação. Caiu logo nas garras da polícia... E como este, muitos outros incidentes ocorreram na madrugada célebre, mais próprios, sem duvida, a embaraçar a eclosão do triunfo do que a facilitá-la. É que se do lado dos revolucionários havia quem suportasse, com fé inquebrantável, todos os obstáculos, e não poucos, que surgiram ante o seu desígnio, do lado do inimigo a convicção da perda irreparável da monarquia enraizara-se profundamente, abalando, com diminutas excepções, as consciências as mais empedernidas. Parece que, mal soaram no silêncio trágico da noite os primeiros tiros de canhão, a maioria das criaturas, às quais incumbia a missão de lutar pelo regime extinto, teve a visão clara da inutilidade do seu esforço.
A influência moral desprendida do acto revolucionário, já em precipitado desenrolar, ajudou muito a conquista da liberdade. A presença da artilharia no campo revoltoso, a imediata adesão do Adamastor e do S. Rafael ao movimento, o bombardeamento do paço, a fuga do rei e a derrota das baterias de Queluz contribuíram inegavelmente, e em larga escala, para assegurar a vitória da República; mas, a par desses factores, não é lícito esquecer a moleza, a inércia dos que constituíam o inimigo, uma e outra derivadas dum scepticismo que a monarquia, sem dar por isso, inspirava desde muito aos próprios que a serviam. É cedo, porém, para entrarmos na enumeração e apreciação desses factores. O nosso propósito, narrando o que vai ler-se, é fixar, com o melhor método possível, os pormenores da sacudidela feliz que destruiu a monarquia portuguesa, as étapes do verdadeiro sonho durante o qual se desmoronou a dinastia dos Braganças. É um pouco a história da organização revolucionária seguida logicamente do relatório da batalha de 4 e 5 de Outubro. Aqui e ali ressaltarão diversas notas confiadas por autênticos conspiradores ao signatário destas linhas e que, se não modificam a impressão geral do quadro da revolta que os leitores conhecem, emprestam-lhe, contudo, nuances absolutamente inéditas que é justo e necessário pôr em letra redonda. A história da organização revolucionária, sabemo-lo perfeitamente, escreveram-na três homens durante o período febril da sua preparação. Um deles, Miguel Bombarda, destruiu, pouco antes de morrer, o capítulo mais interessante, o que delineava, em traços simbólicos, todo o plano de ataque às instituições monárquicas. Liam-se nesse capítulo a força imponente dos elementos revolucionários e a sua distribuição pelos pontos vulneráveis; era o balanço, lucidíssimo para os iniciados e ininteligível para os profanos, do grande exército democrático que se aprestara a investir contra a realeza. Miguel Bombarda destruiu-o receoso de que viesse a cair, após a sua morte, em poder do inimigo.
O outro capítulo escreveu-o João Chagas ao sabor da oportunidade, em minúsculos pedaços de papel, nas margens livres de cartas e telegramas e até em bilhetes de visita. Era o resumo fidelíssimo das assembleias revolucionárias que antecederam o movimento, as actas das reuniões secretas de militares, o registo palpitante das adesões que dia a dia faziam engrossar a legião republicana. Esse capítulo não foi destruído. Atravessou o período mais aceso da luta escondido num chapéu feminino, o chapéu da esposa do ilustre panfletário, e só reviu a luz do dia quando o governo provisório já tinha iniciado a sua obra de reorganização politica. Ainda outro capitulo, o da implantação da Republica, lista dos actos, das determinações que deviam suceder imediatamente à consagração solene do triunfo. Esse esteve, por instantes, condenado a desaparecer nas profundezas dum sifão, transitou depois de algibeira para algibeira e por fim encontrou refúgio seguro na redacção dum jornal, a Lucta... A dois passos da policia. Qualquer desses capítulos, publicado isoladamente despertaria um real interesse e daria margem não só a variadíssimos comentários como a uma legítima exclamação de não menos legítimo espanto. Mas a nossa pretensão é mais modesta. Na leitura do que vai seguir-se, encontrar-se-ão simplesmente os elementos aproveitáveis à formação dum quarto capítulo, meramente subsidiário, não traçado por espírito de revolucionário que o não fomos, mas anotado por quem, durante o período de incerteza, limitou a sua acção pessoal a tomar apontamentos, a ouvir informações, a apreciar incidentes, a defrontar muita decisão, muita coragem, e, sobretudo muito medo, muito pavor. De mistura com isto, repetimos, aparecerão os depoimentos dos revolucionários autênticos, dos que jogaram a vida numa cartada de exito.

A perspicácia dos espiões ao serviço do antigo regime
A polícia, que o defunto juízo de instrução criminal empregava especialmente na espionagem dos chamados agitadores da opinião, recebeu um belo dia do final do reinado do rei Carlos o encargo de averiguar o que projectava de sensacional o partido republicano, que uma denuncia afirmava mover-se activamente numa conspiração surda, mas tremenda. Os bufos puseram-se imediatamente em campo e, dentro de curto prazo, davam ao chefe conta pormenorizada da sua missão. O relatório dessa espionagem, que pretendia, se não estamos em erro, elucidar policialmente o trama revolucionário do 28 de Janeiro, é a documentação mais perfeita sobre a incapacidade dos que essa mesma espionagem exerceram. Um dos bufos diz pouco mais ou menos isto: - Na noite de... ás... horas, vi entrar na casa n.º... da rua de... um   individuo magro, trigueiro, nariz comprido e de óculos, que se me   constou ser empregado dum judeu lá para os lados de... Saiu da    mesma casa às... horas e também se me constou que assistiu com mais     vinte e tantos indivíduos a uma reunião secreta». In Jorge D’Abreu, A Revolução Portuguesa, O 5 de Outubro de 1910, Lisboa, Edição da Casa Alfredo David (encadernador), Imprensa Libanio da Silva, Lisboa, 1912.

Cortesia de CADavid/JDACT