sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Portugal na Espanha Árabe. António Borges Coelho. «”Na Loulé de 1484” três quartas partes da terra pertenciam a mouros forros e o terço restante tinha-lhes pertencido até pouco antes. Mas por que é que se cantaria ainda, no século XVI vicentino, “calbi aravi”, o meu coração é árabe?»

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«(…) Os andaluzes, moçárabes ou não, resistiram durante séculos ao molde ou arquétipo para o qual os empurraram as espadas dos cristãos do norte. Daí o arrebanhar de moçárabes para a servidão o perdão de Afonso VI aos toledanos, o combate ideológico ao rito moçárabe. Daí também a rapidez meteórica com que Giraldo Sem Pavor e os seus moçárabes se apoderaram de um território tão vasto para logo se sumir e o próprio Giraldo mudar de campo sem depor as armas...

No Garbe ou Ocidente não houve extermínios nem expulsão maciça de mouriscos como ocorreu na Espanha dos Reis Católicos e de Filipe III (II). Se milhares de muçulmanos e não menor número de cristãos passaram para Além-Mar; se em Dra tombou Giraldo Sem Pavor e não esteve só, até um confessor do infante Henrique o irá acompanhar como traidor em terras agarenas; se a ribeira do Algarve facilitava a fuga e também alguns assaltos dos mouros da outra banda; milhares e milhares de berberes, de árabes, de maúlas e de moçárabes ficaram definitivamente presos no corpo social que é a nosso, navegam no nosso sangue.
Não foi só das mouras desencantadas fecundadas pelos garanhões da Reconquista que nos chegaram cromossomas árabes e berberes. Sabe-se o que ocorria após a conquista os cristãos ocupavam a alcáçova ou cidadela como o Cid fez em Valência e aos islamitas que persistiam nos suas crenças era dado um prazo, geralmente um ano, para se alojarem fora das muralhas, podendo e devendo conservar as suas herdades. Os moçárabes vencidos pelos seus correligionários só tinham razões para se afirmarem cristãos. Mas não só eles. Muitos néscios da Toledo rendida, segundo Ibne Bassame, renegaram o islamismo e isso aconteceu um pouco por toda a parte. Os exemplos que nos chegam da aristocracia moura são abundantes e esclarecedores alguns filhos, nora e netos de Almutâmide converteram-se ao cristianismo e o mesmo fizeram os filhos sobreviventes de Omar ibne Alaftas, o rei berbere de Badajoz.
Os defensores da tese de extermínio sabem ler e treslêem: os mouros do Algarve vão pagar ao senhor cristão os mesmos tributos que pagavam aos chefes muçulmanos; os vassalos mouros de Faro tornaram-se vassalos do rei cristão. Isto está escrito e reescrito nas crónicas cristãs. Este não-holocausto, esta não-expulsão maciça explicam a densidade de topónimos árabes que sobreviveram na Estremadura portuguesa, no Alentejo e no Algarve, a maior da Península Ibérica. Costa Lobo salientou já que um dos principais elementos populacionais da primitiva monarquia portuguesa era de ex-islamitas que foram diminuindo pela sua incorporação na massa do povo português. Nos finais do século XV subsistiam ainda mourarias em Santarém, Lisboa, Évora, Beja, Estremoz, Portalegre, Elvas, Setúbal, Aviz, Faro, Tavira, Loulé e Silves. Na Faro de 1439 ainda sessenta a setenta moradores com as suas famílias eram muçulmanos descendentes dos mouros da conquista.
Também, dos mouros, não ficaram apenas um ou outro escravo ou homens dos misteres. O que estes últimos se mostraram foi mais relutantes em renegar o Islão e abraçar a cruz. Fatos, moura de Aviz, que fugiu para Além-Mar nos fins do século XIV, deixou na sua terra uma casa na mouraria, duas casas na vila, uma courela no termo, um terço da herdade do Arcediago, 50 vacas, 30 cabras, sem falar das roupas e alfaias. Na Loulé de 1484 três quartas partes da terra pertenciam a mouros forros e o terço restante tinha-lhes pertencido até pouco antes. Mas por que é que se cantaria ainda, no século XVI vicentino, calbi aravi, o meu coração é árabe?»

In António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1989, ISBN 972-21-0402-0.

Cortesia de Caminho/JDACT