sábado, 21 de setembro de 2013

Fernando Pessoa. Poeta da Hora Absurda. Mário Sacramento. «Ora em Fernando Pessoa o que logo (e sempre) nos punge é aquela solução tão por demais levianamente ‘fácil’ da heteronímia. ‘Fácil’, está claro, não porque destituída de talento, pois, ao invés, só foi possível mediante um talento que diremos ‘excessivo’»

Cortesia de wikipedia

O homem e a hora são um só. In Mensagem

Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro. E a minha bondade inversa não é nem boa nem má. In Hora Absurda

Genialidade Absurda
«Na introdução que antepôs às Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues, Joel Serrão escreveu as seguintes palavras que, se bem que o coloquem no polo oposto do que visamos, têm contudo o mérito de chamarem a questão ao terreno que reputamos o mais próprio: Afigura-se-me que o problema dos heterónimos de Pessoa tem a mesma explicação que a dualidade irredutível de Antero: a complexidade da alma humana, acentuada nos temperamentos poéticos geniais, complexidade que não invalida a unidade psíquica das irredutibilidades expressas esteticamente... Se Antero tivesse atribuído ao poeta nocturno e ao apolíneo, que ele foi, nomes diferentes, com uma genealogia, profissão, características somáticas, como Pessoa fez aos seus heterónimos, aí teríamos um complexo problema, de raiz semelhante ao que agora nos preocupa....
Há com efeito em Antero o quer que seja (que não importa agora investigar, mas que distinguimos da tal dualidade, tão convencional em sua abstracta sistematização) que não só confere uma certa legitimidade à hipótese de Serrão, como ainda, num sentido muito mais geral (de que, para nós, tal hipótese não passaria dum aspecto particular) justificou que Pessoa visse nele um precursor da modernidade. Seria fácil, aliás, estabelecer um nexo entre o poeta da razão-em-crise, que ele foi, e os do irracional que se lhe seguiram, reservando a Pessoa, entre uns e outros, a posição intermédia de jongleur dos fragmentos do racional. Do ponto que agora nos importa convém acentuar, contudo, que o que tornou Antero um caso ainda à parte não foi senão a circunstância exacta de ter lutado, em vão embora, contra a corrupção dos tempos, e ter assumido uma posição que em última instância o levaria a acompanhar o seu navio no naufrágio.
Assim, longe de nos quadrar que Antero justifique Pessoa, preferimos que no-lo ajude a compreender à contra-luz. Para o que nos limitaremos a perguntar: Que teria sucedido a Antero se, cativo dum pendor literário sem dúvida aberrante, tivesse permitido que se sentassem à mesa redonda da sua intimidade todas as tendências espirituais de que os Sonetos dão fé, acarinhando-as, impulsionando-as, glosando-as em obras de acomodada e parcimoniosa heteronímia divergente? Formulada a pergunta como foi, torna-se ocioso responder, pois todos reconhecemos que só o fundo de verdade em que a problemática de Antero visou, sem qualquer dúvida, uma resolução pode conferir à sua obra aquela humanidade sem a qual ela não seria. Levado entre combates sempre renovados [a] disputar dia a dia n mão dos Fados / Uma parcela do saber augusto (Espectros), ele mesmo referiu ter essa preocupação influído os poemas de mais aparente evasão, como se depreende do seguinte passo duma carta particular: esse estado de espírito [o carácter desolado de certos poemas], no meio da sua violência, representa um contínuo impulso para a verdade e para o bem, e isso deve ser levado em conta ao poeta. É o que resume, hiperbolizando em- bora, este outro passo da sua correspondência: eu ainda não desisti de abrir, ainda que seja roendo com os dentes e ?t boca em sangue, o muro de bronze do destino.
Quer dizer: ninguém afinal melhor do que Antero permite aperceber o que há de implícito no conceito de personalidade como teor de vida, convergência de tendências, estruturação ideológica, fidelidade a um móbil, e o que por aí mesmo tem sempre de implicar-se numa candidatura ao génio como realização superiormente ímpar de tais condições. Tal como em todos os grandes artistas, a arte de Antero corresponde directamente à problemática do homem servindo-a, só não tendo Antero chegado à fase a que chegam os maiores de por seu turno a servir em virtude de, impossibilitado de atingir a visão unívoca que perseguia, lhe estar vedado esse grau de  identidade da arte com a vida.
Ora em Fernando Pessoa o que logo (e sempre) nos punge é aquela solução tão por demais levianamente fácil da heteronímia. Fácil, está claro, não porque destituída de talento, pois, ao invés, só foi possível mediante um talento que diremos excessivo, mas porque tão comprazida em trilhar um caminho da mais descarnada artificialidade. Isso nos leva a compreender por que teve Fernando Pessoa necessidade de cultivar, tão insistentemente, o mito duma inspiração heterónima premente, misteriosa, imprevisível, de que ele próprio, ao fim e ao cabo, se terá tornado, quem sabe, a própria vítima. É já hoje, de resto, suficientemente conhecida a quota-parte de engenho e humor que entrou nesse mito. E pode facilmente aperceber-se um nexo de necessidade entre essas pretensões e a obra que, denunciando a sua interdependência, dispensa inteiramente, do estricto ponto de vista literário, quaisquer outras conjecturas». In Mário Sacramento, Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda. Contraponto, University of Toronto, Lisboa, 1960.

Cortesia de PCampos/JDACT