quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Escola pública como ‘arena’ política. Contexto e ambivalências da socialização política escolar. José Manuel Resende e Bruno Miguel Dionísio. «… apesar das diferenças de ritmo na sua efectiva realização prática, apresenta efeitos não despiciendos em relação à difusão de um certo perfil de cité política que é já marcante ao longo de todo o século XIX…»

Cortesia de wikipedia

Os processos de escolarização e a constituição da cité política nas sociedades modernas europeias. Pensar a socialização política escolar da escola contemporânea a partir da história da experiência escolar em Portugal
«Num texto recente sobre os processos de construção da alfabetização e da escolaridade: o caso português, António Candeias propõe uma outra forma de reflectir as relações entre a sociedade portuguesa e os processos de aquisição das competências relativamente à escrita. Ao contrário da habitual interrogação sobre as causas do atraso do nosso país face à penetração dos mundos da escrita, o autor sugere ser mais interessante perceber a maneira como, durante o século XX, os portugueses foram constituindo laços cada vez mais firmes com um tipo de cultura escrita, qual o papel que as suas próprias vontades e necessidades tiveram nesse caminho e qual o presumível papel que o Estado e outras instituições, independentemente das ideologias expressas, foram tendo nesta construção de uma sociedade letrada.
Ainda segundo o mesmo autor, uma das etapas fundamentais para se entender a construção dos referidos laços entre os diferentes sectores da população portuguesa com a cultura escrita de tipo escolar passava, por um lado, pela indispensabilidade de se efectuar uma distinção entre os conceitos de alfabetização e de escolarização e, por outro lado, pela indispensabilidade de combinar as metodologias de carácter extensivo e documental com metodologias de carácter intensivo, circunscrito e etnográfico nos estudos sobre esta imbricada relação. Assim, as duas questões assinaladas chamam a atenção tanto para a necessidade de distinguir dois processos de aprendizagem que são muitas vezes confundidos no plano da fundamentação conceptual como para a necessidade de utilizar uma pluralidade de métodos e de técnicas de observação, combinação muito útil para apreender (no sentido de seguir) de uma forma cada vez mais apurada a construção dos sentidos das acções dos indivíduos modernos, quer como indivíduos singulares, quer como indivíduos ligados a distintas formas colectivas.
Insistir sobre a importância de distinguir conceptualmente os processos de alfabetização e de escolarização parece nada ter a ver com as reflexões sociológicas que pretendemos realizar sobre os actuais processos de socialização política dos professores e estudantes do ensino secundário no quadro do Observatório de Escolas promovido no ICS. Num primeiro olhar, tudo indica que não há qualquer relação. Num olhar mais aproximado das interrogações e hipóteses que pretendemos lançar, tal relação não só faz sentido, como é imprescindível. Na verdade, António Candeias faz notar que as transições verificadas entre os processos de alfabetização da leitura e da escrita para os processos de aquisição da cultura letrada de tipo escolar foram decisivas tanto na construção como na consolidação do projecto imaginado de modernidade europeu, sobretudo na sua dimensão política.
Não vamos aqui delinear as diferenças entre cada um destes dois processos nas complexas relações que desenvolvem com a cultura letrada, nem tão-pouco vamos estabelecer as diferenças entre dois tipos de cultura letrada e as suas correspondências com cada um destes processos. O que neste momento nos interessa sublinhar é que a escolarização aparece na modernidade como um processo formal e instituído de transmissão e aquisição da cultura letrada, mas também de submissão de coortes populacionais com níveis etários bem determinados a uma forma de socialização imposta e aplicada através de uma instituição construída expressamente para o efeito […], o que transforma a escola numa instância central que se organiza em rede e se articula com outras formas de educação, sob o comando político, pedagógico e administrativo do Estado.

NOTA: A noção de cité é aqui utilizada a partir do sentido que Luc Boltanski e Laurent Thévenot lhe conferem ao inspirarem-se nas filosofias políticas clássicas que lhe atribuem como objecto a possibilidade de esboçar uma ordem legítima assente em princípios de justiça. A cité política pode assim ser entendida como um modelo analítico que permite identificar os diferentes regimes de justificação que estão na base da crítica, da disputa ou do acordo entre os membros de um mesmo espaço social nas sociedades modernas complexas.

Tendo em conta a distinção operada por Wagner quando este sociólogo reflecte sobre os dois principais tipos de narrativas constitutivas do projecto imaginado de modernidade, a narrativa com o enfoque disciplinar e a narrativa com o enfoque na autonomia, é possível avançar com a hipótese geral de que os processos de escolarização, tal como são apresentados conceptualmente por António Candeias, contribuem para sustentar tanto as teses da disciplina como as teses da liberdade no período de transição entre a modernidade liberal restrita e a modernidade liberal organizada. Seguindo este raciocínio, a natureza institucional do modelo escolar produzido historicamente em toda a Europa, apesar das diferenças de ritmo na sua efectiva realização prática, apresenta efeitos não despiciendos em relação à difusão de um certo perfil de cité política que é já marcante ao longo de todo o século XIX, mas que se torna mais representativo com o triunfo político da configuração administrativa do Estado-nação». In José Manuel Resende e Bruno Miguel Dionísio, Escola pública como ‘arena’ política. Contexto e ambivalências da socialização política escolar, Análise Social, vol. XL, 2005.

Cortesia de ASocial/JDACT