terça-feira, 24 de setembro de 2013

A Insurreição Miguelista nas Resistências a Costa Cabral (1842-1847). José Brissos. «… em que a direcção da vida pública é disputada por grupos de cidadãos de comportamento mais ou menos violento, arregimentados pelos notáveis dos diversos sectores de opinião»

jdact

A Montagem de uma Conspiração. Debates de Comando e Direcção
«A experiência de hegemonia governativa de Costa Cabral, iniciada em Fevereiro de 1842, com a restauração da Carta Constitucional, apresenta um significado decisivo na maturação política e institucional do liberalismo em Portugal e na definição dos processos e formas de resistência que o mesmo sistema envolve. Com efeito, este período balizado entre a restauração da Carta e a revolta da Maria da Fonte (Março de 1846) constitui um momento essencial na construção do Estado contemporâneo, dotando-o de uma efectiva capacidade de intervenção nas áreas regionais, através de procedimentos uniformes de controlo fiscal e administrativo até então inexistentes. O país local não tinha sentido ainda os grandes efeitos da instalação do liberalismo. As populações tinham-se estabilizado em padrões duráveis de vida, prestígio e hierarquia que, na sua rotina, quase ignoravam os ritmos do país político. E nestas áreas que o liberalismo autoritário cabralista vai fazer sentir, pela primeira vez, o peso do Estado como instância reguladora da vida quotidiana e susceptível de calcular com algum rigor os rendimentos colectáveis.
O Código Administrativo de 1842, o sistema da repartição no cálculo do imposto predial (19 de Abril de 1845) e a lei de saúde pública (26 de Novembro de 1845), são exemplos da mesma orientação, norteada pela ideia da eficácia e racionalidade do poder do Estado, cuja debilidade funcional impedia, até aí, uma presença sistemática e ordenada na vida portuguesa. A forma como o país, nas suas diversas correntes de opinião, encarou a ordem cabralista reveste a maior importância experimental, uma vez que além das habituais divergências doutrinárias obrigou a uma definição clara de alternativas de governo através de uma exposição programática de objectivos e meios de realização.
A anulação do decreto de 10 de Fevereiro de 1842 que previa a reforma da Carta Constitucional, a ser realizada na legislatura imediata, em que os deputados teriam poderes constituintes, seria um dos argumentos decisivos da resistência liberal ao cabralismo. Serviria, inclusivamente, para justificar a malograda Revolta de Torres Novas (1844) e o aproveitamento político da revolta da Maria da Fonte. A força e convicção do regime, o seu dispositivo de vigilância e contenção das oposições conduziu estas últimas a um esforço unitário de luta contra o governo. Estão ainda por estudar os hábitos e processos políticos da época, nomeadamente o uso da violência ou da pressão armada usada quer pelo governo, quer pela oposição. Tais processos de persuasão apontam-nos para uma forma específica de vivência local dos fenómenos políticos, em que a direcção da vida pública é disputada por grupos de cidadãos de comportamento mais ou menos violento, arregimentados pelos notáveis dos diversos sectores de opinião. É esse o território efectivo das lutas políticas. As formas de propaganda, embora pudessem incluir algumas expressões colectivas e públicas (imprensa, reuniões, etc.), assentavam, de forma determinante, nos contactos pessoais, na sondagem das influências. O caciquismo era a expressão quotidiana desta realidade.
Neste sentido os actos eleitorais, aliás indirectos, apresentam uma forma especial de representatividade: não é apenas uma questão de maioria propriamente dita, mas de força, de eficácia dos notáveis políticos e dos seus grupos de agitação. O ambiente em que estes actos eleitorais decorrem acaba por ter um peso significativo. É este o cenário onde actuará a chamada coalisão oposicionista que, nas eleições de 1842, combatia o ministério Terceira-Cabral. A participação dos miguelistas nesse conjunto, juntamente com os setembristas e cartistas moderados enuncia a presença de uma atitude da parte dos primeiros que, sem ser inédita, define um foco de divergência no campo miguelista.
Deve dizer-se desde já que essa forma de resistência no interior do sistema não era aquela que melhor representava a atitude mais autêntica que a proposta miguelista, na época, envolvia ou prefigurava. Na verdade o problema não residia na cooperação política com os setembristas, a qual já anteriormente (1840) se tinha verificado, mas no modo como eram encaradas as eleições. A ideia de concorrer para o reforço da presença eleitoral dos setembristas não oferecia dúvidas no campo miguelista, uma vez que essa postura contribuía para o enfraquecimento dos beneficiários mais ávidos do sistema, os cartistas. Essa colaboração era, para os defensores do monarca Miguel, tomada como tendo um carácter nacional e patriótico, dada a relativa subalternidade dos homens de Setembro na dinâmica liberal triunfante e a probidade moral dos seus dirigentes mais significativos». In José Brissos, A Insurreição Miguelista nas Resistências a Costa Cabral (1842-1847), Faculdades de Letras de Lisboa, Edições Colibri, 1997, ISBN 972-8288-80-8.

Cortesia de Colibri/JDACT