sábado, 28 de setembro de 2013

A Inquisição de Évora. Jornal Alentejo Popular. António Borges Coelho. «Numa sociedade mortificada por escrúpulos de consciência, sempre desconfiada dos seus pensamentos e dos pensamentos e das práticas dos vizinhos, o tribunal alimentava-se quase exclusivamente da denúncia»

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«(…) No dia 13 de Janeiro de 1729, o monarca João V visitou incógnito, em companhia do físico-mor, os cárceres da Inquisição (maldita) de Évora. Entrou pela porta secreta do alcaide dos cárceres, assistiu ao interrogatório de um feiticeiro, examinou os cárceres de vigia, entrou na sala do despacho, olhou das janelas o palácio do arcebispo e penetrou depois, à luz das velas, na sala do secreto. A 6 de Fevereiro, no seu regresso da fronteira, o rei visitou de novo os cárceres e na sala da tortura um dos guardas sujeitou-se simuladamente aos tratos de polé e às correias do potro. Não faltaram conflitos a minar o entendimento entre as quatro grandes instituições que marcavam a vida da cidade: a Sé, a Universidade, a Inquisição (maldita) e o Concelho. A Inquisição (maldita) e a Sé estavam frente a frente. O Concelho tinha a sua sede num dos extremos da Praça Grande ou Praça do Giraldo onde se desenrolavam os autos da fé. A Universidade marcava um espaço junto da antiga alcáçova.
Na coexistência nem sempre pacífica dos poderes, os arcebispos furtavam-se a ir ao auto da fé por questões de preeminência. Queriam uma cadeira especial que os inquisidores, administradores do acto, negavam. Mas a ligação à Sé era orgânica: quase todos os inquisidores acumulavam o seu cargo com os de cónego da Sé e muitos deles subiram às mitras, designadamente à mitra de Évora, considerada nos meados do século XVIII mais rendosa que a Sé de Braga e a segunda das Hespanhas. Também não faltaram questões com a Universidade que disponibilizava os seus doutores para a pregação nos autos da fé e para o acompanhamento final dos presos. As questões eram ainda de preeminência. Quem devia abastecer-se primeiro de carne no mercado: os criados dos inquisidores ou os da Universidade? Num conflito célebre entre a Universidade e a Inquisição (maldita), deflagrado em 1643, João IV decidiu contra a Universidade, possuidora de antigos privilégios e partidária da Restauração, e a favor da Inquisição (maldita) que contra ele conspirava e prendera o padre jesuíta Francisco Pinheiro, lente de Teologia.
A tensão entre a Inquisição (maldita) e a cidade explodiu algumas vezes em violência. Um dos momentos de maior tensão viveu-se na última década do século XVI quando os inquisidores prenderam boa parte dos mercadores eborenses da Praça Grande. Para escárnio das famílias, penduravam-se na igreja de S. Antão as efígies dos condenados à morte. Mas os inquisidores queixavam-se que alguém as destruía pela calada ao mesmo tempo que os cristãos-novos se recusavam a ser fregueses de S. Antão. Numa sociedade mortificada por escrúpulos de consciência, sempre desconfiada dos seus pensamentos e dos pensamentos e das práticas dos vizinhos, o tribunal alimentava-se quase exclusivamente da denúncia. E toda a sua actividade interna consistia em fabricar denúncias, verdadeiras e falsas, usando as longas prisões sem culpa formada, as ciladas, a coacção psicológica, a tortura. O momento mais alto era o do auto da fé anual, a Testa que por vezes se prolongava pelo dia inteiro e onde eram reconciliados ou garrotados e queimados os hereges relapsos e negativos, quase sempre cristãos-novos.
O lugar de deputado e de inquisidor abria as portas do verdadeiro cursus honorum que desembocava nas mais altas prebendas da Igreja e do Estado: conezias, mitras, reitorados da Universidade, Conselho de Estado (por inerência, o membro do Conselho Geral tornava-se membro do Conselho de Estado), Mesa da Consciência e Ordens. Pelos quadros da Inquisição (maldita) de Évora passaram doutores e mestres em teologia, doutores, licenciados e bacharéis em direito canónico ou em ambos os direitos. Entre eles, o teólogo dominicano frei Jerónimo Azambuja que participou no Concílio de Trento, e Marcos Teixeira, cónego doutoral da Sé de Évora, futuro bispo do Brasil que comandou a reconquista da Baía tomada pelos holandeses em 1624.
O chamado distrito onde a Inquisição (maldita) de Évora exercia a sua actividade abarcava todo o sul do Tejo com excepção da península do Setúbal. Nos seus primórdios recebeu presos de Trás-os-Montes e da Beira. As cidades e vilas mais castigadas foram Beja, Évora, Elvas, Montemor-o-Novo, Campo Maior, Arraiolos, Viçosa, Estremoz, Serpa, Faro. Os períodos de maior rigor ocorreram nos governos de Filipe II e IV e após a morte de João IV. E só depois do governo do marquês de Pombal, o pedreiro livre substitui o cristão-novo. Entre as vítimas conta-se o desembargador e humanista Gil Vaz Bugalho, cristão-velho, amigo de linguistas de origem hebraica, doutos no latim, no hebraico e no caldeu, tradutor para linguagem dalguns livros do Velho Testamento e queimado em 1551. Frei António Abrunhosa, franciscano natural de Serpa, parte de cristão-novo e cristão no coração, assistiu à prisão da mãe, das irmãs e sofreu ele próprio a perseguição dos seus conventuais e do Santo Oficio (maldito).

Manuel Casco Farelais, aluno da Universidade e fidalgo cristão-novo, enviou da prisão um Padre Nosso em verso antes de ser queimado em 1629. Em 1613 um cristão-novo denunciava alentejanos que judaizavam em Hamburgo e Amesterdão. Entre eles contavam-se o licenciado Francisco Rosa, dos Rosas de Beja, Manuel Gomes de Évora (Jacob Abenatar), Álvaro de Castro, dos Namias de Beja, Melchior Mendes de Elvas (Abraão Franco), Nuno Bocarro (Jacob Pardo), dos Bocarros de Beja, e outros. Os fugitivos diminuíam as forças de Portugal e alimentavam as da Holanda e doutros países do Norte. António Costa Lobo, um dos cidadãos mais ricos de Beja, onze anos preso sem culpa formada e queimado em 1629, afirmava que o Santo Ofício (maldito) era um tribunal do diabo. Que os inquisidores vinham da Beira julgar as consciências alheias e, em vez de as salvarem, as metiam no inferno.
Durante quase três séculos muitos dos homens mais poderosos das cidades e das vilas a Sul do Tejo passaram pelos cárceres e sofreram o confisco dos seus bens. De tal modo que, já em 1630, o inquisidor-geral Fernando Castro escrevia que se o reino estava menos rico em compensação estava mais católico. Mas no fim das contas, sem somar o sofrimento e a humilhação, sem contar a desonra das gerações, nas palavras de frei António Abrunhosa, podemos afirmar que o Alentejo e o Algarve ficaram menos católicos e mais pobres». In António Borges Coelho, A Inquisição de Évora, Jornal Alentejo Popular, Beja, Outubro, 2006.

Cortesia de JAlentejo Popular/JDACT