quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Não via mais que um buraco negro, por onde corriam traços de luz azul, vermelha ou branca. Depois, pouco a pouco, como quem fixa uma imagem que treme, foi focando a irrealidade desses mundos…»

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O Comércio do Invisível
«(…) Não quis apurar a nitidez das imagens e preferiu deitar os olhos para a escuridão do tempo anterior ao seu nascimento. Foi capaz de reconstituir, maravilhada, a vida dos pais e dos pais dos pais, assim sucessivamente até aos patriarcas antigos que entravam nos relatos do cónego de Braga. Contemplou comovida o desespero de Balaão diante do estupor sagrado do seu asno e a retirada das águas diante da ousadia de Moisés. Apreciou a luta do neto de Abraão com o anjo e viu a fúria simpática de Sara contra o seu Deus. O derradeiro ponto dessa espiral de humanais gerações, que a memória lhe dava a conhecer, era o Paraíso inicial, o paradisum voluptatis, com o rio de quatro braços, as árvores, o ouro sem impureza, a goma aromática, dita bdélio, e o lápis de ónix.
Quando Leonor Teles ouviu, no meio das religiosas que em surdina salmodeavam, o cónego citar o bdellium, a resina medicatriz, que curava todos os males e que surgira na primeira terra do Paraíso, regada pelo melhor braço do grande curso de água que Deus criara para chegar a todas as partes do divino Jardim, reconheceu a fragrância inebriante que lhe surgira pela vez primeira na casa das provisões culinárias da tia Guiomar. Afinal as surpresas do aroma eram nada menos que as delícias da primeira essência terrena, quando a corrupção ainda não se introduzira na vida da Terra. O segundo resultado foi ainda mais assombroso. O facto de ter deparado com os portões abertos da memória, permitira-lhe entrar sem intromissões por esse espaço anterior da vida com o à-vontade de quem visita um reino desconhecido mas real. Estivera em Toro, em Évora, em Zamora e assim por sucessivas partes até chegar à terra do Dilúvio ou da primeira criação.
Ganhara com isso a percepção duma visão anterior, que lhe parecia apta a examinar outros caminhos. Até aqui, soubera concretizar numa realidade espessa e viva todo o passado pessoal ou colectivo; agora, da posse dessa visão interior que lhe permitia cristalizar o passado numa realidade tão presente como a da matéria, estava na disposição de condensar outros mundos, aqueles onde viviam os seres sobrenaturais ou infranaturais. Se Jacob lutara a noite inteira com um anjo e Job fora atormentado por um demónio, era porque decerto havia outros mundos, onde esses seres de natureza imaterial viviam à luz do seu dia como os homens, as árvores e os bichos viviam neste à luz do Sol. E se os olhos interiores de Leonor serviam para dar vida ao passado, colocando-o diante de si com uma nitidez mais precisa que a da realidade presente, também deviam prestar para indagar esses planos invisíveis e transnaturais, dando-lhes visibilidade e consistência.
Aplicou-se nesse novo propósito. A princípio teve dificuldade em isolar os mundos habitados por esses outros seres que de vez em vez se misturavam ao nosso. Não via mais que um buraco negro, por onde corriam traços de luz azul, vermelha ou branca. Depois, pouco a pouco, como quem fixa uma imagem que treme, foi focando a irrealidade desses mundos, revelando-lhes a existência e fixando-lhes a realidade. Lá estavam as cortes dos anjos e dos demónios, os primeiros vivendo num sopro aéreo e os segundos numa flama ígnea. Apressou-se a observá-los; preferia agora explorar esses seres distintos que os simples, de carne e osso, que viviam no presente ou no passado. À medida que os foi estudando percebeu que todos eram entidades subtis, criaturas do mundo espiritual, que se diferenciavam pelo plano que habitavam, superior ou inferior, uns muito próximos da luz e outros muito distantes dela. Qualquer dessas criaturas não tinha forma definida, porque a todo o momento se transformava num novelo palpitante de metamorfoses, impossível de fixar numa forma distinta.
De qualquer modo, pelo hábito de examinar atentamente essas estranhas formas de vida, foi-lhe possível diferenciar todos eles e até identificar alguns em particular. Viu os querubins, que tinham por missão guardar o Paraíso com a espada de fogo, impedindo o homem de comer os frutos imortais da árvore da vida. Esses mesmos seres que Ezequiel outrora identificara com face de homem e corpo de leão. Distinguiu os serafins, emissários também da vontade divina, adornados de seis asas, e envolvidos por um bálsamo de resina que curava todas as dores. Mas além das grandes famílias, pôde ela encontrar alguns dos celestes intervenientes particulares na história do homem. Identificou o anjo Rafael que aparecera a Tobias sob a forma de homem e o levara a curar a cegueira de seu pai, Tobit, com o fel dum peixe. Reconheceu Gabriel, o arcanjo que desceu junto do jovem Daniel, o adivinho de Nabucodonossor, para o ajudar a interpretar urna visão onírica. Do mesmo modo, não teve dificuldade em verificar os traços identificadores de vários dos espíritos inferiores. Viu Asmodeu, o demónio que matara os sete noivos de Sara, filha de Ragüel. Contemplou Azazel, que se alimentara no deserto dos antigos rituais de expiação. Diferenciou por fim Lilit, o demónio com seios de fêmea, que assombrara, nos tempos da saída do Paraíso, a vida dos primeiros homens, e que para sempre se infiltrara no sangue e na história do homem e da mulher».

In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT