quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O Pobre Tolo. Prosa e Poesia. Teixeira de Pascoaes. «A vida é um duelo entre a lembrança e o esquecimento, o drama da Saudade! O esquecimento fez a noite, o silêncio e a solidão; mas é na solidão, na noite e no silêncio que as lembranças tomam vulto»

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Apresentação. Pascoaes: o texto sonâmbulo
«Talvez a maior grandeza desta obra esteja na soberana solidão com que nos olha. Indiferente às convenções, escandalosamente distante daquilo que no seu tempo (e no nosso) era a civilização e a literatura. O Pobre Tolo é uma figura de fronteira na paisagem mental do século português. Uma figura seminal, nocturna, uma negríssima substância insone, íntimo incêndio de escuras flamas, como algures se diz, uma conversa de mortos, arbitrária, irónica, fragmentária. Raras vezes se viu texto assim na nossa tradição literária. O autor encerra um regresso post-mortem (o seu?), como outrora as almas, pelos atalhos nocturnos. Sou velho espectro ressurgido. [...] Vivo, estou aqui, diante desta velha casa onde nasci, sofri e amei, e donde me afastaram, certo dia, metido entre quatro tábuas. Volta para avisar-nos da sombra que imperceptivelmente nos corroi, para dizer-nos dessa morte mais escura que é a morte dos que fingem a vida, surdos ao seu esplendor ou ao seu gemido. Eis, em poucas palavras. O Pobre Tolo: este texto sonâmbulo, apostado em despertar-nos; este livro ditado como uma longa e pungente confissão, que, uma vez escutada, nos torna testemunhas do processo que um homem instaura ao seu tempo; este monólogo desesperado, furioso e terno; este apocalipse ressentido e trágico e, ao mesmo tempo, inocente e utópico. Não sei colocar num escalão este livro, como agora se tornou imperioso, visto ter proliferado, em demasia, A apetência pelo rebanho. Quando a literatura se tornou uma arte de vendas para que servirá uma obra que obstinadamente, obscenamente, apetecia escrever, faz da literatura uma questão de vida ou de morte?
Se Pascoaes é, entre todos os nossos grandes poetas, o mais difícil de recuperar, é também porque a cinquenta anos da sua morte, ainda não entendemos bem o que era o seu malucar sozinho com as cousas; a fome de cousas inefáveis que ele dizia ser a sua; a natureza de judeu errante, atiçada por obsessões e obsessões, por entendimentos secretos, por mortos que sonham, por nomes confusos que perturbam e por essas vozes misteriosas que nos entristecem para sempre.
Habituaram-nos a ligar Teixeira de Pascoaes à saudade, à crença numa panteísta transcendência, a essa espécie de anti-Tabacaria, para citar um dos topoi da nossa modernidade, que é o Marão, ao mundo exterior que nele é mais forte que o mundo interior. Mas lembrando apenas isso, esquecemos tanta coisa. É que esse Pascoaes interdito que O Pobre Tolo, de alguma maneira, vem iluminar.
[…]
Este texto sonâmbulo, uma espécie de meditação sobre que palavra poderia ser dita depois do fim das palavras, é ainda um quase ver. Mas, como atesta Pascoaes, o quase é o bastante para inundar de trevas a paisagem. Que trevas tão luminosas, quero dizer». In José Tolentino Mendonça

O Pobre Tolo
A vida é o sonho de um pobre tolo, um fumo a sair duma caveira. O fumo tolda o espaço e desenha as formas deste mundo e de outros mundos. O fumo do meu lar nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas. Os anjos e os fantasmas pairam sobre o meu lar, ao cair da tarde... E eu mesmo vou abraçado àquelas figuras, não sei para onde. Dissolvo-me no Azul, porque eu sou, bem o conheço, uma fantasia do crepúsculo... Um pobre tolo extasiado no crepúsculo, a ouvir cantar o mocho das suas mágoas e tristezas. Tudo é o sonho dum pobre tolo. E o pobre tolo é também um sonho, um sonho de Deus que não encarnou inteiramente. Por isso, ele anda envolvido numa auréola, e tem a leveza duma nuvem...
Somos um sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as cousas. Este Limbo é Verbo não encarnado, intacto e divino. Daí, o concebermos a Divindade e também a imperfeição do nosso ser que não se definiu absolutamente, não cristalizou em todas as linhas que deveriam marcar a sua integral fisionomia.
Se fôssemos um ser definido, seríamos então um ser perfeito, mas limitado, materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma, a imperfeição. A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo. Em nós, o Verbo não encarnou inteiramente. Somos corpo e alma, verbo encarnado e verbo não encarnado, a matéria e o limbo, o esqueleto de pedra e um fumo que o encobre e ondula em volta dele, e dança aos ventos da loucura... E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. Neste limbo interior, neste infinito espiritual, vive a lembrança de Deus que alimenta a nossa esperança, e transfigura esse bicho do Demónio, que anda por esses boulevards, vestido à moda ou coberto de farrapos.

Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança, um fumo que sobe e não se apaga. Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande fogueira invisível que os demónios e os anjos alimentam. Vivo, porque espero. Lembro-me, logo existo. Uma cousa é a lembrança de si mesma e a esperança de outra cousa; mas conserva, através de todas as variações, o seu desenho essencial. O homem será sempre o corpo dum macaco esboçado pelo demónio e a alma dum anjo concluída pela morte. Será sempre o que foi: o conflito de várias forças que se resumem em duas forças: a vida e a morte; a vida e a sua legião de sombras diabólicas, a morte e a sua teoria de anjos a cantar. A lembrança e a esperança: avida e o corpo do Universo. A vida é um duelo entre a lembrança e o esquecimento, o drama da Saudade! O esquecimento fez a noite, o silêncio e a solidão; mas é na solidão, na noite e no silêncio que as lembranças tomam vulto, como figuras do Outro Mundo. Irradiam uma luz que as aproxima e define, e uma sombra que as afasta e espectraliza. Esta sombra e esta luz confundem-se numa incerta emanação nublosa, a alma da nossa esperança a modelar-se em corpo de lembrança...» In Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo, Prosa e Poesia, Apresentação de Tolentino Mendonça, Assírio e Alvim, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-37-0589-3.

Cortesia de A. e Alvim/JDACT