sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Muçulmanos. Cristãos. Judeus. Toledo. Séculos XII-XIII. «Ser toledano era reconhecer, era fazer sua essa fraternidade que se instalava na cidade entre “pessoas do Livro”, judeus, cristãos e muçulmanos. Todos nos uníamos na mesma causa contra Córdova»

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Um toledano diferente dos outros
«(…) Mas, para Tariq, esta mesa não era mais do que um símbolo de poder e de riqueza. Portanto, escolheu-a. Mussa Ibn Nusayr, governador de Marrocos que, em nome do califa de Damasco enviara Tariq para conquistar o reino visigótico, soube do valor das riquezas encontradas em Toledo. Invejoso do êxito do seu lugar-tenente, vem a Toledo e obriga Tariq a entregar-lhe a famosa Mesa de Salomão: esta não pode deixar de lhe pertencer.
Último episódio: agora é o califa que pede a Tariq e a Mussa uma relação pormenorizada das suas conquistas e do seu saque e, portanto, os dois homens tomam o caminho de Damasco. Quando se encontram os dois na presença do califa, Mussa entrega a al-Walid, era o seu nome, a maravilhosa mesa afirmando que foi esse o saque que ele recolheu pessoalmente aquando da tomada de Toledo. Tariq previra uma tal felonia. Como prova da sua conquista da cidade, apresenta ao califa uma das trezentas e sessenta e cinco pernas que tivera a precaução de retirar, como prova da veracidade do que diz. Mussa foi condenado por ter atribuído a si próprio méritos que pertenciam a outros. Foi-lhe proibido regressar a Espanha. Perdoado mais tarde pelo seu soberano, morreu assassinado numa mesquita de Damasco.
Este capítulo da conquista impressionou-me muito, continua Tulaytuli. O homem mostra-se muitas vezes indigno do paraíso que Deus lhe concede nesta terra. Toledo deveria ter continuado a ser aquela cidade onde teríamos podido ser os mais felizes do mundo e no entanto, a sede do poder do dinheiro, dos prazeres afastou-nos muitas vezes dessa alegria que emanava da própria cidade. Este episódio da mesa ilustra-o bem. Durante esses séculos em que Toledo foi Tulaytula, de 92 a 477 da Hégira (711-1085), estávamos submetidos a forças contrárias que nos empurravam ora numa direcção, ora noutra. Por um lado, estivemos em constante rebelião face ao poder de Córdova, que nos arrebatara o título de capital, e que foi objecto de todas as atenções, primeiro dos emires e depois dos califas. Quanto tempo perdido em disputas, em revoltas, em guerras fratricidas!
Mas, por outro lado, esses acontecimentos transformaram-nos em verdadeiros toledanos. Foi ao opormo-nos aos outros, aos cristãos do norte, é claro, mas também aos cordoveses, que nos tornámos um só com a nossa cidade. Ser toledano era reconhecer, era fazer sua essa fraternidade que se instalava na cidade entre pessoas do Livro, judeus, cristãos e muçulmanos. Todos nos uníamos na mesma causa contra Córdova. Toledo, a insubmissa, não podia aceitar desempenhar sem protestos esse papel de cidade de fronteira que lhe era atribuído em condições iguais às de Saragoça em Aragão e de Mérida na Estremadura. Merecia voos mais altos. E quando nos sublevámos, foi um poeta, Gulib ben Abd Allah quem se pôs à cabeça do levantamento. Os versos inflamados que declamava do alto das muralhas aumentavam os nossos ardores toledanos.
Mas Córdova obstinava-se em querer quebrar esta solidariedade. Entre esses dias funestos que ensombraram a vida da cidade, há um que deixou em mim a recordação mais dolorosa; é conhecido na história da cidade pelo nome o dia do fosso. ,Nesse dia, o filho do emir al-Hakem I, de passagem por Toledo, organizou no palácio do governador uma grande festa para que fora convidada toda a nobreza que existia em Toledo. À chegada, os setecentos convidados eram conduzidos a um corredor que terminava num grande fosso; na extremidade desse corredor, um esbirro, a soldo do príncipe, decapitava-os e a cabeça e o corpo rolavam para o fosso. Como então eu era um médico de fama em Toledo, as circunstâncias ditaram que tivesse de entrar por outra porta. Apercebi-me de que ninguém chegava à sala do alcázar; compreendi a armadilha e preveni aqueles que ainda estavam à espera.
Soube mais tarde que o príncipe Abd-el-Rahman, filho de al-Hakem, conservou durante toda a vida a visão da espada tinta com o sangue das suas vítimas. Esfregava incessantemente os olhos para tentar eliminar a representação que se lhe impunha; isso transformou-se num tique nervoso de que nunca se libertou». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.

Cortesia de Terramar/JDACT