sexta-feira, 2 de agosto de 2013

História da Família. James Casey. «As sensíveis reflexões sobre a arte, o folclore e a pedagogia do fim da Idade Média sugeriam a importância potencial de encararmos os nossos próprios ordenamentos familiares, o grupo nuclear doméstico»

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O Significado da Família
«Verifica-se, quando julgamos pessoas de outros períodos ou sociedades, uma tendência para partir dos valores importantes no nosso próprio tempo e para seleccionar factos significativos à luz desses valores. Esta abordagem bloqueia o acesso ao contexto particular das pessoas que tentamos compreender. Elas são separadas da estrutura que na realidade constituem com outras e heteronimicamente colocadas em contextos determinados por valores contemporâneos a que não pertencem». In Norbert Elias

«Muito do que recentemente os historiadores têm escrito sobre a família procura, de uma maneira ou de outra, explorar as origens de um sistema particularmente familiar para nós, Ocidentais: o núcleo doméstico, onde se reunem um homem e uma mulher, companheiros em igualdade, votados à educação, em sentido lato, da sua prole comum. A ascensão da família nuclear começa a conquistar o lugar deixado vago pela ascensão da liberdade, famosíssima interpretação liberal da história, como meio de conferir sentido ao passado. O problema é que ambos os conceitos, não sendo necessariamente erróneos, vêm a história pelo lado errado do telescópio. Um olhar centrado na família nuclear, tal como centrado nos parlamentos, pode revestir esses corpos de uma identidade espúria que vieram a assumir apenas em tempos mais recentes. Como havia parlamentos e lares no século XVII, podemos ser falsamente induzidos na certeza de que se trata por isso das mesmas instituições, quase com o mesmo significado que hoje têm. Surge assim o perigo de nos esquecermos de procurar caminhos alternativos para o ordenamento das relações constitucionais e pessoais, benefício, sociabilidade masculina, que não sobreviveram no Ocidente. Desse modo, sai empobrecida a nossa compreensão do real funcionamento das sociedades mais antigas.
A leitura dos pioneiros da análise da família nuclear foi e continua a ser fascinante. Há várias décadas, Philippe Ariès redespertou o interesse dos historiadores pelo assunto com um livro magistral sobre a infância. As suas sensíveis reflexões sobre a arte, o folclore e a pedagogia do fim da Idade Média sugeriam a importância potencial de encararmos os nossos próprios ordenamentos familiares, o grupo nuclear doméstico, como parte de uma grande mudança histórica. Mas é interessante notar desde já uma advertência que ele inclui no prefácio à edição de 1973 da sua grande obra, L'enfant et la vie familiale: Tenhamos, porém, esperança de que a história da família não fique enterrada debaixo de uma abundância de publicações devido à sua popularidade, como aconteceu com a sua jovem predecessora, a história demográfica. Na sua modéstia, preocupava-o a eventualidade de uma excessiva especialização nas diversas vertentes dos temas por si suscitados, e uma excessiva limitação dentro da sua própria época, o período mais moderno, levarem as pessoas a perder de vista o objecto do seu exercício, que era o de nos compreendermos a nós próprios no tempo. Incitava os jovens historiadores a recuarem no tempo: a Alta Idade Média, suspeitava, seria uma fronteira muito mais frutuosa. Ter-lhe-ia sido sem dúvida penoso ter sido tomado, e por isso criticado, por historiador das atitudes, especificamente do aparecimento do afecto no seio do lar, quando o que pretendia era levar os outros a pensar em termos do contexto que tornou possível o afecto.
Aí reside, evidentemente, um dos obstáculos à história da família: a tendência para tratar o tópico como campo discreto de investigação. Há dois séculos, Montesquieu demonstrou o valor de considerar o direito parte da civilização, expressão do modo que a sociedade escolheu para se organizar, em vez de tábuas de pedra impostas por um legislador. A história do direito, tal como a história religiosa, continua a ser influenciada por esta busca de contexto. No caso da família, essas férteis linhas de investigação não são tão evidentes. Pode ser por a família ter sido sempre encarada como uma instituição com limites visíveis, de uma forma diferente da religião ou do direito, não sendo por isso problemática a sua existência. Se não fosse uma instituição (isto é, o lar), então os contornos pareceriam tão exasperantemente vagos que desafiariam qualquer investigação. Claro que há um interesse substancial, especialmente entre os medievalistas, no significado político dos laços de parentesco fara do lar. Mas estas águas tendem a ser turvas. Como recentemente salientou J. C. Holt, o facto de dezasseis dos vinte e quatro barões escolhidos para aplicar a Magna Carta serem de algum modo parentes do grande opositor do rei João, o conde Richard de Clare, por si só, não nos diz grande coisa. As relações foram tecidas num padrão explicativo, como se bastasse dizer que esses homens eram parentes, e que isso bastava. Por outro lado, o facto de as famílias se zangarem com frequência, e quem não sabe das relações conturbadas entre João ou Ricardo III com os seus sobrinhos?, suscita talvez um encolher de ombros, uma sensação de que as famílias de então deviam ser muito parecidas com os seus equivalentes modernos: fonte de deveres para alguns, de ressentimento para outros, de indiferença para a maioria». In James Casey, The History of the Family, 1989, História da Família, Editorial Teorema, Lisboa, 1990, ISBN 972-695-142-9.

Cortesia de Teorema/JDACT