terça-feira, 20 de agosto de 2013

Deserto com Vozes. Urbano Tavares Rodrigues. «Mas há ainda o Chico, o pastorinho das ovelhas, que tem de ir um dia ao seu fim do mundo, quer dizer, a Beja (porque de ano para ano vai adiando, ou lhe adiam, uma operação imprescindível) e pensa que virá então ver-me, ali ao pé»

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O que mudou e o que ficou
«Sob o céu já a pardejar corria, alto, o vento, que não tardaria a mungir, amanhando-as, aquelas nuvens mais grossas e sanguentas. Rochas e garças, e mais rochas peladas, cinza dura, na desolação e loucura do montado. Alentejo com chuva. Páscoa frustrada. Que tal os trigos? A ver vamos... Há para aí alguns menos ruins...
Nos terrenos pascigosos, à beira da estrada que o Simca devora, surgem, agrestes e emblemáticos, os saramagos e as grisandas. Sob as saraivadas bruscas, os ranchos da monda cobrem-se com lívidos plásticos, fantasmais. No monte, o silêncio alentejano, a decadência, a lonjura, os guizos, o olhar meigo dos bichos. Calcorrreio sendas antigas que as ervas agora escondem. Por todo o lado a imagem da minha mãe. Até nos locais que foram os do muro branco, do portão, cujo sino repicava em azul, precisamente na Páscoa, quando o garotio vinha às amêndoas e nos acordava, aos gritos, com uma constelação de alegria. Mãe, és tu ou a terra que me julga aqui, em Moura, ao pôr do sol? Que voz me pede contas do meu destino?
Sigo com os olhos a correnteza do Ardila, acompanho-a, com a suave tristeza destes passos no tempo, até ao moinho árabe, onde a água se quebra em espumas glaucas. Ficaram ainda duas mulheres, com os filhos de roda, a lavar a roupa e a cantar, os pés sem medo dentro da água fria. Este som não está à venda: oferece-se ao espaço do meu regresso. São as mesmas mulheres de negro de há vinte anos, apenas com as galochas que as campaniças de outrora não usavam. Têm os maridos e os noivos em França ou em Lisboa na construção civil.
Mas há ainda o Chico, o pastorinho das ovelhas, que tem de ir um dia ao seu fim do mundo, quer dizer, a Beja (porque de ano para ano vai adiando, ou lhe adiam, uma operação imprescindível) e pensa que virá então ver-me, ali ao pé, do outro lado do Tejo. E o maioral que de uma vez se meteu a caminho até à capital e logo renunciou a ficar, não entendendo como podia semelhante gente viver com tanto barulho de automóveis que nem de noite param! É esse mesmo maioral, homem de 40 anos apenas, mas bem usados, que canta por entre a melancolia dos olivais:

Já os dias vão passando
e as semanas também vão.
Já secaram os eucaliptos
para as tábuas do meu caixão.

Árvores
Com a Primavera surgiram, numa quinta-feira cor de terra, entre a chuva gasta e a morna infância do sol. Um rosto quieto e doce como um fruto secreto. E a primeira árvore, verde, múltipla, desenhada à pena sobre três bolas de fogo, as esferas deste insólito calor de Março. Em baixo, a avalanche, o resvaladiço verde fresco da promessa que desperta. Há voos curtos de pássaros e folhas novas, douradas, vermelhas e verdes também, folhas que adejam, ou vibram, como borboletas, por entre os galhos ainda negros de duas árvores gémeas, com ninhos».

In Urbano Tavares Rodrigues, Deserto com Vozes, Seara Nova, Lisboa, 1976.

Cortesia de Seara Nova/JDACT