quarta-feira, 14 de agosto de 2013

As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961. Edila Gaitonde. «Um dia recebemos uma carta de Rama Hegde, o nosso amigo do Forte de Peniche. Estava doente e precisava de ser visto por um especialista. Com a ajuda de um amigo de Lica, arranjou-se maneira de trazer o prisioneiro a Lisboa»

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«(…) Os nossos amigos goeses entraram logo de seguida, saudando-nos e felicitando-nos uma vez mais. Eles próprios tinham feito o almoço nas cozinhas do forte. Sentámo-nos todos à volta da mesa, saboreando pratos deliciosos e participando alegremente na conversa geral que se seguiu, enquanto os guardas, ao lado, nos observavam com olhar condescendente. Desta vez havia entre nós alguém que não conhecia. Era uma jornalista francesa que tinha acabado de chegar de Paris com o fim de visitar um dos presos, o Bragança Cunha, e que agora se tinha reunido ao nosso grupo. De vez em quando, a senhora olhava para nós de uma maneta inquisitiva, como se estivesse a consumir-se em curiosidade. Porém, a conversa entre nós não convidava a perguntas íntimas, dirigidas a pessoas que mal se conheciam.
Pouco depois, quando tomávamos o café, a jornalista voltou-se súbito para Lica e perguntou-lhe sem rodeios: O que é que o fez escolher este lugar para a sua lua-de-mel? Ninguém estava preparado para tal pergunta e tão abrupta. Estávamos demasiado envolvidos nos nossos problemas para analisarmos as razões das nossas acções. Mas a resposta de Lica foi rápida espontânea e saiu-lhe como um suspiro da alma: Homenagem ao sacrifício.

Decidimos partir para a Índia antes do fim do ano, o que nos deixou com apenas quatro meses para nos prepararmos para a viagem. Foi um tempo deveras excitante porque tive a oportunidade de me encontrar com os amigos e colegas de Lica, tanto portugueses como indianos. Lica tinha chegado a Lisboa muito antes de mim e feito muitos amigos. Os mais íntimos eram, sem dúvida, Vitória e Teresa Lavradio, filhas do marquês do Lavradio, cuja amizade perdurou até ao fim dos seus dias. Foi em casa do marquês que Lica foi apresentado à destronada rainha de Portugal, D. Amélia de Bragança, que tinha vindo a Portugal, do seu exílio em Versalhes, com uma licença especial para visitar o grande amigo marquês do Lavradio, que estava nos últimos dias de vida. Esta foi a primeira e última visita da rainha depois da implantação da República em 1910. Foi uma reunião muito emotiva entre grandes amigos, sempre muito unidos, mesmo na enorme adversidade que os tinha atingido com a extinção da monarquia e durante o exílio na Inglaterra. Foram horas tristes que marcaram os últimos vestígios de uma era que tinha deixado de existir.
À medida que o tempo de partir se aproximava, aumentava o meu intenso desejo de começar a aprender a língua do meu marido. Infelizmente, ele parecia não ter inclinação ou desejo de o fazer. Andava sempre muito ocupado ou talvez preocupado com o nosso futuro. A única ajuda que me deu nesse sentido foi ensinar-me o alfabeto indiano, o devnagari, que aprendi rapidamente e comecei a usar nas minhas notas para ele. Assim, passei a escrever-lhe em português, mas com caracteres indianos, o que veio a ficar como uma espécie de jogo entre nós. Por vezes perguntava-lhe como se preparavam alguns pratos indianos, que naqueles dias eram ainda quase desconhecidos em Lisboa. Lica dava-me então uma lista de condimentos, a maior parte deles completamente estranhos à nossa culinária, acabando por dizer, com ar convencido: junta tudo e coze bem. Depois de umas tantas experiências desastrosas, tive de desistir. Só muito depois é que vim a aperceber-me de que ele não tinha a menor ideia do que fosse a culinária, haute cuisine ou não, facto que lhe custava admitir.
Um dia recebemos uma carta de Rama Hegde, o nosso amigo do Forte de Peniche. Estava doente e precisava de ser visto por um especialista. Com a ajuda de um amigo de Lica, que era comandante da Polícia de Lisboa, arranjou-se maneira de trazer o prisioneiro a Lisboa; acompanhado por um guarda e sob a responsabilidade do meu marido, que ficaria encarregado da parte médica. Aproveitámos esta oportunidade para convidar para o almoço dois outros goeses que também conheciam o Rama, o Shencora Camotim e Datta Keni, o nosso best man, que ainda se encontrava em Lisboa. Lica andava excitadíssimo. Estava a preparar-se para, depois do exame médico, dar oportunidade ao seu amigo de passar umas horas de bom convívio antes de regressar à prisão.
Nessa manhã, ao sair para o hospital, voltou-se para mim com um sorriso verdadeiramente encantador, dizendo à queima-roupa, que os convidados chegariam para o almoço por volta das 13 horas e que esperava que eu cozinhasse um bom caril de peixe. Mas, Deus dos céus, como seria possível? Nunca tal tinha experimentado antes! Quando reparou na minha expressão de desespero, tentou animar-me, acrescentando: Não vale a pena afligires-te! Corta um coco, junta-lhe uns tomates e cebola, pó de caril e, no fim, o peixe. Como vês, é muito fácil, não custa nada. E com aquela última frase desapareceu porta fora. Nem queria acreditar no que acabara de me acontecer. Tinha de preparar rapidamente um prato exótico do qual só ouvira o nome e para uns convidados que mal conhecia. Sempre acabei por encontrar um coco na única delicatesse em toda a Lisboa onde se podiam comprar produtos de terras distantes, mas levou-me algum tempo e duas facas partidas até poder arrancar a parte comestível do coco da dura casca que o envolvia. Estava ainda a acabar de melhorar o mais possível o sabor do meu caril de peixe quando os convidados começaram a chegar». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.

Cortesia de E. Tágide/JDACT