segunda-feira, 26 de agosto de 2013

As Duas Caras. Guimarães. Barroso da Fonte. «No século XVI, Marrocos era um país sem segurança, sem governo, e, graças a certas aproximações étnicas, nenhum povo europeu poderia melhor que o português realizar a obra da civilização e organização marroquina»


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Relação entre Portugal e Marrocos
«(…) Dois cherifes, descendentes de Ali, fixaram-se, no fim do século XIII, no sul de Marrocos. O primeiro, estabelecido no vale de Draa, originou a dinastia dos cherifes saadios, que, depois de vencer os Merinides, governou em Marrocos até 1659. O segundo, estabelecendo-se em Sidjilmassa, é o fundador dos cherifes hassanides que substituíram os cherifes saadios, cujos descendentes ainda hoje governam em Marrocos. A dinastia hassanide atingiu o apogeu do seu poder sob Mulai-Abu-Nacer-Ismais (1672-1727), o qual, apoiado por negros, dominou os berberes, rasgou o país de estradas, engrandeceu a sua residência em Meknes, expulsou os portugueses das costas do Atlântico e, em 1684 tirou Tânger à Inglaterra, que nós lhe havíamos cedido em 1661. A Espanha continuou na posse de Ceuta, que Portugal lhe cedera em 1668.
Morto aquele enérgico chefe, a sua dinastia foi enfraquecendo sempre e as tribus berberas de Marrocos têm, depois daquela morte, vivido independentes. Quer dizer: teria sido possível a Portugal, com firme e hábil política, criar, defender, sustentar e engrandecer uma prolongação do seu domínio no Gharb d'álem mar. Mais facilmente o teria feito do que sustentar o império da Índia, onde ficou perdido muito e mal empregado esforço de gente portuguesa. Hoje, Marrocos é um anacronismo junto à civilização europeia.
O Maghreb e Aksa é o extremo ocidente impenetrável e feroz. Ainda até há pouco os navios que se aproximavam das costas do Rif corriam grave risco. As potências rivais deixaram prolongar aquele desafio contra a civilização. A França, que tinha em Marrocos uma fronteira de 1000 quilómetros, justifica os seus direitos sobre o desmantelado império. Já pela declaração de 8 de Abril de 1904 a Inglaterra reconhecera os direitos da França sobre Marrocos pela sua ligação com a Algeria e a Tunísia. Portugal poderia ter realizado em Marrocos a obra que a França pôde realizar na Algeria, a nova França. Marrocos é a região do norte de África mais valiosa e favorecida; lá a invasão árabe não foi devastadora.

Mapa de Marrocos em 1912

A região marroquina é a mais arborizada, e ali as chuvas são abundantes e regulares. A cordilheira do Atlas defende Marrocos da devastação do deserto. O litoral marroquino é extraordinariamente fértil. O subsolo, pouco conhecido, é presuntivamente tão rico como o da Argélia e o da Espanha. Está ali uma grande riqueza a explorar, e que grandeza não teria Portugal atingido, se, em vez de andar mundo fora a procurar experiências distantes, se habilitasse, na tradição mineira de Adiça, a desenvolver as indústrias agrícola e extractiva nos campos vastos dos seus naturais domínios.
É Marrocos a região do norte africano onde a influência dos invasores tem sido mais passageira. Ali domina o fanatismo muçulmano mais vivo. Os dez milhões de marroquinos são ferozes contra os cristãos. Mas isso não prova que os portugueses não pudessem, ali mais facilmente do que na Índia, prolongar o seu império. Os marroquinos nunca puderam organizar-se em poder regular. Ao lado do blad-el-maghzen (país do governo) existe o bad-el-esciva (país dos insubmissos). A região de Marrakech e a de Fez, bem como o Gharb propriamente dito, têm organização de governo.
O Gharb é um maravilhoso país agrícola, sobretudo para a criação de gados. O Rif e a região montanhosa dos Braber são ocupados por sociedades anárquicas, sectárias e incultas. O país de Jabala é de gente insubmissa, como em regra toda a região montanhosa marroquina. No século XVI, Marrocos era um país sem segurança, sem governo, e, graças a certas aproximações étnicas, nenhum povo europeu poderia melhor que o português realizar a obra da civilização e organização marroquina. Esta obra, porfiada e útil, não a quiseram realizar os homens de Portugal, enleados na obra aventurosa e dispersiva do domínio através dos mares. E grande podia ter sido a obra de Portugal em Marrocos, onde ainda hoje não há comunicações com o interior. Há apenas, nas regiões menos desorganizadas, algumas nzalas, espécie de casas de refúgio. Ainda hoje, para ir de Marrakech a Fez, é necessário passar pela região de Rabat para evitar os latrocínios de Zaian e Zemmur». In Barroso da Fonte, Guimarães e as Duas Caras, Editora Correio do Minho, 1994, ISBN 972-95513-8-3.

Cortesia de Guimarães/JDACT